Streptococcus pyogenes.

A espécie Streptococcus pyogenes é a principal representante dos estreptococos β-hemolíticos, e forma cadeias relativamente longas quando cultivada em meio líquido. As necessidades nutricionais são complexas, mas, de modo geral, crescem bem em meio de ágar sangue e em meios líquidos contendo glicose. Em sua parede celular está ancorado um polímero constituído de ramnose e N-acetil-Dglicosamina, numa proporção 2:1, que constitui o antígeno de grupo A de Lancefield. Por isso, os membros da espécie S. pyogenes são também conhecidos como estreptococos do grupo A ou pela sigla GAS (do inglês, group A streptococci).

A espécie S. pyogenes tem mostrado, ao longo do tempo, uma elevada capacidade de adaptação ao hospedeiro humano, atuando como importante agente etiológico de uma série de manifestações clínicas, entre as quais predomina a orofaringite, assim como sequelas não supurativas, representadas pela febre reumática e a glomerulonefrite. Além disso, a frequência e o impacto, em termos de morbidade e mortalidade de algumas das manifestações clínicas, vêm aumentando ao longo dos anos. Por exemplo, a partir da década de 1980, observou-se o aumento do número de casos e da gravidade de infecções estreptocócicas invasivas, com quadros de fascite necrosante, miosite, bacteremia e sepse. S. pyogenes chegou a ser referido pela imprensa leiga como “bactéria que come carne humana” (flash eating bacteria), devido à destruição intensa de tecidos que ocorre em quadros clínicos como a fascite necrosante. Além disso, em 1987, foi relatada a ocorrência de infecções causadas por S. pyogenes, cujo quadro clínico era semelhante ao da síndrome do choque tóxico estafilocócico.

Fatores de virulência

S. pyogenes possui vários constituintes celulares e produz diversas substâncias que contribuem em maior ou menor grau para a sua virulência. Sendo considerada a espécie de Streptococcus mais versátil em relação à patogenicidade, muitos de seus fatores de virulência são geralmente considerados multifuncionais, estando envolvidos em várias e diferentes etapas da patogênese.

Cápsula

A maioria das amostras de S. pyogenes possui uma cápsula constituída de ácido hialurônico, quimicamente idêntico ao existente no organismo humano. Atribui-se a este fato a sua não imunogenicidade. Com relação à virulência, a principal função da cápsula é proteger a bactéria das células fagocitárias, sendo demonstrado que os estreptococos capsulados dificilmente são fagocitados e os não capsulados, além de serem facilmente fagocitados, são também destruídos pelos fagócitos. In vitro, os estreptococos perdem a sua cápsula no fim da fase exponencial da curva de crescimento, o que coincide com a produção intensa de hialuronidase. 

Proteína M

Trata-se de uma proteína fibrilar, em dupla hélice, que se encontra ancorada no peptideoglicano da parede celular bacteriana e se estende até a superfície, projetando-se para o exterior, além da cápsula. É um importante fator de virulência e apresenta grande importância prática, pois, devido à sua variabilidade antigênica, permite classificar os S. pyogenes em sorotipos. Como fator de virulência, a proteína M desempenha funções importantes: adere à fibronectina e ao plasminogênio da matriz extracelular e a células epiteliais e endoteliais, funcionando como adesina; interage com o fibrinogênio mascarando a presença da bactéria no organismo; e liga-se aos componentes do complemento e à porção Fc dos anticorpos, bloqueando as suas interações com os fagócitos. Devido a estas últimas atividades (e possivelmente outras), a proteína M é fortemente antifagocitária. Além da proteína M, S. pyogenes produz outras proteínas semelhantes (ditas M-like) que podem participar de sua virulência, por exemplo, ao fixar anticorpos pela porção Fc.

Pili

S. pyogenes foi a primeira das principais espécies de estreptococos a ter reconhecida a presença de pili em sua superfície celular. A função fundamental desta estrutura polimérica, constituída por múltiplas subunidades proteicas, é a adesão a proteínas da matriz extracelular e a células do hospedeiro, uma vez que se estende da parede celular bacteriana até o meio extracelular, tendo também importante papel na formação de biofilme e na resistência a fagócitos. Em S. pyogenes, acredita-se que esta estrutura também seja capaz de reconhecer e se ligar aos componentes da saliva humana.

C5a peptidase (ou ScpA)

É uma protease exposta na superfície do micro-organismo que degrada o componente C5a do complemento, reduzindo o recrutamento de leucócitos para o local da infecção. Além disso, ScpA também participa na adesão do micro-organismo à fibronectina da matriz extracelular e a células epiteliais.

Estreptoquinase, desoxirribonuclease e hialuronidase

São enzimas produzidas pela maioria das amostras de S. pyogenes. A estreptoquinase, também chamada fibrinolisina, tem a capacidade de dissolver coágulos, pela transformação do plasminogênio em plasmina. A desoxirribonuclease degrada o DNA e a hialuronidase dissolve a substância fundamental do tecido conjuntivo, o ácido hialurônico. Em virtude de suas atividades, é provável que as três enzimas participem da patogênese das infecções estreptocócicas. Na verdade, são muitas as evidências a favor desta possibilidade, mas não existe comprovação definitiva com relação a qualquer uma delas. A maioria dos convalescentes de infecções estreptocócicas apresenta anticorpos contra as três enzimas, sendo a pesquisa destes utilizada para fins de diagnóstico.

Estreptolisinas

São duas as hemolisinas produzidas por S. pyogenes: estreptolisina S e estreptolisina O. A estreptolisina S é responsável pelo halo de hemólise em torno das colônias de S. pyogenes, tanto na presença como na ausência de oxigênio. Entretanto, aparentemente, não é imunogênica. Evidências recentes sugerem que pode ser responsável pela morte de fagócitos, além de poder estar envolvida na invasão de tecidos mais profundos. A estreptolisina O só é ativa na ausência de oxigênio. Como é imunogênica, a maioria dos pacientes apresenta anticorpos séricos contra ela na fase de convalescência. A estreptolisina O contribui para a virulência de S. pyogenes pela ação lítica em hemácias, leucócitos e possivelmente outras células. A sua capacidade de formar poros nas membranas das células eucarióticas parece, também, ser essencial para a ação de outra enzima produzida por S. pyogenes, a NADase (nicotinamida adenina dinucleotidase), que ao entrar nas células hospedeiras por esses poros pré-formados exerceria suas funções pro-apoptóticas, ajudando assim na sobrevivência e proliferação do micro-organismo. Uma alta produção e expressão de estreptolisina O e NADase vem sendo associada a um maior potencial patogênico apresentado por amostras do sorotipo M1. Além disso, a estreptolisina O é cardiotóxica, quando injetada por via endovenosa em animais de laboratório.

SpeB

SpeB foi originalmente descrita como um dos superantígenos produzidos por S. pyogenes, por isso a mesma nomenclatura foi utilizada para sua denominação. No entanto, estudos mais recentes revelaram que esta proteína é, na verdade, uma cisteína protease potente e multifuncional, que pode ser tanto secretada para o meio extracelular, quanto exposta na superfície do micro-organismo. Entre suas várias funções, destacam-se: a capacidade de ligação a laminina da matriz extracelular, degradação de proteínas do hospedeiro, e ativação de interleucinas. Quando secretada para o meio extracelular cliva IgG, e quando associada a superfície celular bacteriana assume basicamente um papel de adesina. A produção desta proteína por amostras de S. pyogenes, juntamente com a ocorrência de mutações no sistema regulatório CovRS (ver adiante), está relacionada à transição de um fenótipo colonizador (considerado relativamente inócuo) para um perfil invasivo (ou hipervirulento).

Patogênese

Uma ampla gama de manifestações clínicas pode ser associada a S. pyogenes, desde a colonização assintomática da faringe até infecções extremamente graves e invasivas como a fascite necrosante. A maioria das infecções causadas por S. pyogenes tem início nas vias aéreas superiores (faringe) ou na pele. Qualquer que seja a porta de entrada, S. pyogenes somente causa infecção se for capaz de vencer os mecanismos de defesa do hospedeiro, representadas pela fagocitose e por anticorpos contra toxinas e demais fatores de virulência. Além disto, estes micro-organismos podem inativar o complemento e ter sua presença mascarada pela cápsula e fibrinogênio fixado pela proteína M. As sequelas não supurativas (febre reumática e glomerulonefrite) são de natureza imunológica. Já é reconhecido há muito tempo o conceito de que dentro desta espécie bacteriana existem amostras “especialistas” em infecções da faringe e amostras “especialistas”em infecções cutâneas, enquanto outras são consideradas generalistas” e causam ambos os tipos de infecção em taxas semelhantes. Tal tendência é considerada dependente do tipo M apresentado pela amostra. No entanto, mais recentemente, vem sendo elucidado que não somente o sorotipo M, mas também o tipo da região FCT são fatores determinantes do tropismo tecidual de S. pyogenes. Por exemplo, os tipos M mais associados a infecções cutâneas, como M49, sempre apresentam a proteína ligadora de colágeno Cpa na região FCT, fato este que é explicado pela presença abundante de colágeno na derme humana.

Nas infecções da faringe, S. pyogenes é, de modo geral, transmitido por meio de aerossóis/gotículas e a primeira etapa da infecção consiste em sua adesão ao epitélio da mucosa. Apesar das elucidações mais recentes, até hoje não existe consenso entre os pesquisadores quanto às adesinas que participam deste processo. Aparentemente, várias adesinas podem participar simultaneamente, sendo as mais importantes as proteínas F e M que se ligam a proteínas da matriz extracelular. As proteínas ligadoras de fibronectina parecem ser fundamentais para a patogênese desses micro-organismos, tanto nas infecções de faringe quanto nas cutâneas. S. pyogenes tem a capacidade de invadir células
de cultura de tecidos, mas não se sabe se na faringite ocorre invasão da mucosa. Entretanto, a existência de portadores normais sugere que somente a adesão não é suficiente para causar faringite. Embora a intensidade da faringite seja variável e o processo autolimitado, complicações decorrentes desta infecção são observadas, sendo as mais frequentes a escarlatina, o choque tóxico, as bacteremias e infecções de outros tecidos por contiguidade. A escarlatina e o choque são decorrentes da ação de toxinas, enquanto a bacteremia resulta da invasão da corrente circulatória uma vez que o micro-organismo consiga subverter as defesas do organismo.
A principal complicação não supurativa da faringite estreptocócica é a febre reumática, que é um processo com base imunológica. As infecções cutâneas são geralmente adquiridas por contato com pacientes portadores de piodermites e se instalam quando a pele apresenta lesões provocadas por traumas, picadas de inseto, cirurgias e por outros meios nem sempre evidentes. As infecções podem ser superficiais ou profundas, estas podendo ser fatais. Com frequência relativamente elevada, as infecções profundas são acompanhadas de bacteremia e de choque. Este pode ocorrer quando o estreptococo produz um dos superantígenos ou toxinas pirogênicas. A sequela não supurativa que pode se seguir às infecções cutâneas é a glomerulonefrite difusa aguda.

Doenças

Faringites

As faringites são causadas por vírus e bactérias, sendo as virais mais frequentes do que as bacterianas. Entre as bacterianas, em torno de 90% são causadas por S. pyogenes. Atualmente, devido ao uso de antibióticos, somente de 1 a 3% das faringites apresentam complicações, as mais comuns sendo otites, mastoidites e bacteremias. A infecção é transmitida por gotículas infectadas provenientes de pacientes com o mesmo tipo de processo. Aglomerações humanas em ambientes fechados facilitam a transmissão. As faringites podem ser acompanhadas de escarlatina, cujas manifestações aparecem em um a dois dias após o início da infecção, desaparecendo em cinco a sete dias.

Piodermites

As piodermites são infecções purulentas da pele causadas, na maioria das vezes, por estreptococos e/ou estafilococos. O impetigo e a erisipela constituem as piodermites estreptocócicas mais comuns. O impetigo estreptocócico, também conhecido como impetigo crostoso ou não bolhoso geralmente se localiza nas áreas expostas do corpo, ocorrendo com mais frequência em crianças no verão, sendo de localização preferencialmente facial, embora muitas vezes predomine nas extremidades (pernas e braços), espalhando-se para outras áreas do corpo por auto contaminação. Mesmo nas formas extensas raramente o impetigo é acompanhado de manifestações gerais. A infecção é adquirida por contato com pacientes portadores do mesmo tipo de processo.

Febre reumática

A doença caracteriza-se por lesões inflamatórias não supurativas, envolvendo o coração, as articulações, os tecido celular subcutâneo e o sistema nervoso central. Os indivíduos que sofrem um episódio de febre reumática são particularmente predispostos a outros episódios, em consequência de infecções estreptocócicas subsequentes das vias aéreas superiores. Várias hipóteses têm sido levantadas para explicar a patogênese da febre reumática, mas o peso das evidências sugere tratar-se de uma doença imunológica. Uma das evidências é a existência de antígenos comuns aos tecidos cardíacos e a certas estruturas da célula estreptocócica (proteína M, membrana citoplasmática). As infecções estreptocócicas não tratadas podem ser seguidas por febre reumática em até 3% dos casos em populações militares, e na população em geral os dados são bastante variáveis. Atualmente, a doença é considerada rara nos Estados Unidos e na Europa, apesar da ocorrência esporádica e recente de surtos nesses locais, mas parece continuar com elevada frequência na maioria dos países em desenvolvimento, onde é considerada a maior fonte de problemas cardíacos na população pediátrica.

Glomerulonefrite

A glomerulonefrite pode aparecer depois da faringite e das piodermites, sendo mais frequente após as últimas. Como a febre reumática, trata-se também de uma doença de natureza imunológica. Além da presença de vários antígenos comuns ao tecido renal e à estrutura da célula estreptocócica, outras evidências reforçam a idéia de que a glomerulonefrite seja de natureza imunológica. A frequência de aparecimento é bastante variável, dependendo muito do sorotipo M do estreptococo causador da infecção prévia. Quando a infecção cutânea é causada por um tipo altamente nefritogênico, como o sorotipo M49, a frequência pode ser superior a 20%

Diagnóstico e tipagem

O diagnóstico da infecção é feito pelo isolamento e identificação do micro-organismo. O isolamento de S. pyogenes é facilmente obtido em placas contendo meio de ágar sangue, onde a bactéria forma colônias β-hemolíticas. A maneira mais segura e prática para identificar S.
pyogenes é verificar se a amostra isolada possui o antígeno do grupo A. S. pyogenes pode ser presuntivamente identificado por ser sensível à bacitracina e hidrolisar o substrato pirrolidonil-ß-naftilamida (teste do PYR). Também foram desenvolvidos vários testes para o diagnóstico rápido das infecções por S. pyogenes. Esses testes são baseados no emprego de reagentes específicos para detectar a presença do antígeno do grupo A ou de genes espécie-específicos diretamente em espécimes clínicos, através de reações sorológicas ou de amplificação por PCR, respectivamente. O diagnóstico também pode ser feito de forma indireta. Pacientes infectados por S. pyogenes produzem anticorpos contra a estreptolisina O, hialuronidase e desoxirribonuclease. A pesquisa de anticorpos contra estreptolisina O é positiva em 85% dos pacientes, ao passo que a pesquisa de anticorpos para hialuronidase e desoxirribunoclease é positiva em 95%, e a pesquisa para os três anticorpos é positiva em praticamente todos os pacientes. Entretanto, em virtude do aparecimento tardio dos anticorpos, o estudo da resposta sorológica está primariamente indicado quando do diagnóstico da febre reumática e glomerulonefrite. Deve ser lembrado que, após piodermites, os níveis de antiestreptolisina O são geralmente baixos, porque esta hemolisina é provavelmente inativada pelos lipídeos cutâneos. O teste sorológico mais indicado para o estudo da resposta sorológica de pacientes com piodermites é a pesquisa de antidesoxirribonuclease. O diagnóstico das demais infecções causadas por S. pyogenes é geralmente feito somente pelo isolamento e identificação do micro-organismo. É importante lembrar que a ausência de resposta sorológica potente geralmente indica que as manifestações reumatológicas e renais não estão relacionadas a uma infecção por S. pyogenes

Epidemiologia

A faringite estreptocócica é uma das infecções mais frequentes na infância e juventude. A incidência é maior entre cinco e 15 anos, com o pico ocorrendo nos primeiros anos de frequência à escola. A infecção se transmite normalmente pelo contato direto de pessoa a pessoa, por meio de gotículas de saliva ou de secreção nasal. Aglomerações, como as encontradas em colégios e alojamentos militares, favorecem a transmissão da infecção. É possível que a passagem de pessoa a pessoa selecione amostras mais virulentas. A infecção é mais frequente nas épocas mais frias. Em crianças, a porcentagem de portadores normais é de 15% a 20%, e no adulto é consideravelmente mais baixa. Poeira, roupas, lenços e outros fomites contaminados não são importantes na transmissão da infecção. As piodermites são mais frequentes em crianças entre dois e cinco anos, pertencentes a populações que vivem em más condições de higiene. A infecção é mais frequente durante épocas quentes e em regiões tropicais. A transmissão da piodermite não é bem conhecida. As possíveis vias são contato direto, contaminação do meio ambiente e certos vetores como moscas.

Bibliografia

Microbiologia, Trabulsi-Alterthum, 6ª edição.

Larissa Bandeira

Estudante de Medicina e Autora do Blog Resumos Medicina

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