As síndromes paraneoplásicas (SPs) representam um grupo complexo e diversificado de manifestações clínicas associadas a neoplasias malignas, que surgem não como consequência direta da presença física do tumor, mas sim de seus efeitos sistêmicos ou da resposta imunológica do hospedeiro à sua presença. A compreensão de sua definição e mecanismos subjacentes é fundamental na prática oncológica.
Definição e Mecanismos Fisiopatológicos Fundamentais das Síndromes Paraneoplásicas
As síndromes paraneoplásicas são definidas como um conjunto de sinais e sintomas que ocorrem em pacientes com câncer, mas que não são diretamente causados pelo efeito de massa do tumor primário, por suas metástases, pela invasão tecidual local, obstrução, nem pelos efeitos colaterais dos tratamentos oncológicos. Representam, assim, manifestações indiretas ou remotas da malignidade, mediadas por fatores que atuam sistemicamente, à distância do sítio tumoral. Sua ocorrência pode preceder, ocorrer concomitantemente ou surgir após o diagnóstico do câncer, afetando diversos sistemas orgânicos (endócrino, neurológico, dermatológico, hematológico, reumatológico, entre outros).
Principais Mecanismos Fisiopatológicos
A etiologia das síndromes paraneoplásicas é multifatorial, envolvendo principalmente dois mecanismos fisiopatológicos distintos, embora por vezes interligados:
- Produção de Substâncias Biologicamente Ativas pelo Tumor: Células neoplásicas podem adquirir a capacidade de sintetizar e secretar uma variedade de substâncias que exercem efeitos sobre tecidos e órgãos distantes. Estas substâncias incluem:
- Hormônios produzidos ectopicamente (ex: ACTH na Síndrome de Cushing ectópica; ADH na SIADH; PTHrP na hipercalcemia humoral da malignidade).
- Citocinas e fatores de crescimento (ex: IL-6, TNF-alfa, implicados na caquexia e febre; TGF-α na acantose nigricans; IGF-II na hipoglicemia paraneoplásica).
- Peptídeos e enzimas.
- Anticorpos produzidos pelo tumor (raro).
- Fatores pró-coagulantes (associados ao sinal de Trousseau).
- Resposta Imunológica Antitumoral com Reatividade Cruzada: O sistema imunológico do hospedeiro, ao montar uma resposta contra antígenos expressos pelas células tumorais (antígenos onconeurais, por exemplo), pode gerar uma reação autoimune. Através de mecanismos como o mimetismo molecular, esta resposta imune acaba por atacar tecidos saudáveis que expressam antígenos semelhantes. Este mecanismo é particularmente relevante em síndromes neurológicas paraneoplásicas e envolve frequentemente a produção de autoanticorpos específicos (ex: anti-Hu (ANNA-1), anti-Yo (PCA-1), anti-CV2/CRMP5, anti-Ma2, anti-amfifisina na encefalite límbica; anticorpos anti-canais de cálcio voltagem-dependentes (VGCC) na Síndrome de Eaton-Lambert).
A natureza exata do mecanismo fisiopatológico pode variar consideravelmente dependendo da síndrome específica e do tipo histológico do tumor subjacente, destacando a complexidade destas manifestações associadas ao câncer.
Fisiopatologia das Síndromes Paraneoplásicas
A etiopatogenia das síndromes paraneoplásicas é diversificada, envolvendo principalmente a produção de substâncias biologicamente ativas pelo tumor e respostas imunes desencadeadas pela neoplasia.
Produção de Substâncias Biologicamente Ativas pelo Tumor
As células neoplásicas podem produzir e secretar uma variedade de substâncias que atuam sistemicamente, mimetizando ou interferindo em vias fisiológicas normais. Os principais mediadores incluem:
- Produção Ectópica de Hormônios: Tumores secretam hormônios fora de seu sítio habitual. Exemplos proeminentes são: Hormônio Adrenocorticotrófico (ACTH) (causando Síndrome de Cushing ectópica, comum no CPCP); Hormônio Antidiurético (ADH) (levando à SIADH, também associada ao CPCP); e o Peptídeo Relacionado ao Hormônio da Paratireoide (PTHrP). O PTHrP é a principal causa de Hipercalcemia Humoral da Malignidade (HHM), ligando-se ao receptor do PTH nos rins e ossos, aumentando a reabsorção óssea e tubular renal de cálcio. Menos frequentemente, ocorre produção ectópica de PTH ou Calcitriol (1,25-dihidroxivitamina D), este último associado a linfomas, aumentando a absorção intestinal de cálcio e a reabsorção óssea.
- Secreção de Citocinas: Citocinas inflamatórias como Interleucina-6 (IL-6) e Fator de Necrose Tumoral alfa (TNF-α) são liberadas, mediando manifestações sistêmicas como febre, caquexia e perda ponderal. Podem também contribuir para a hipercalcemia através da estimulação da reabsorção óssea.
- Produção de Fatores de Crescimento: Tumores liberam fatores que induzem alterações à distância. O Fator de Crescimento Transformador alfa (TGF-α), por exemplo, pode estimular queratinócitos e fibroblastos via ligação ao receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR), resultando na hiperplasia e hiperpigmentação cutânea da acantose nigricans paraneoplásica. A produção de Fator de Crescimento Semelhante à Insulina tipo 2 (IGF-II), principalmente por tumores mesenquimais, é um mecanismo de hipoglicemia paraneoplásica, que pode ser severa e persistente. Outros mecanismos de hipoglicemia incluem anticorpos anti-insulina (raro), consumo excessivo de glicose pelo tumor ou insuficiência hepática induzida pelo tumor.
- Produção de Peptídeos e Fatores Pró-coagulantes: Diversos peptídeos são secretados. A liberação de fatores pró-coagulantes por células tumorais (frequentemente em adenocarcinomas, como gástrico e pancreático) ativa a cascata de coagulação, aumentando o risco trombótico e manifestando-se como tromboflebite migratória (Sinal de Trousseau).
- Produção de Anticorpos pelo Tumor: Excepcionalmente, o próprio tumor pode produzir anticorpos, como anticorpos anti-insulina, contribuindo para quadros de hipoglicemia.
Respostas Imunológicas Mediadas pelo Tumor
O sistema imunológico do hospedeiro, ao reagir contra antígenos tumorais, pode inadvertidamente atacar tecidos normais, especialmente no sistema nervoso.
- Produção de Autoanticorpos: A resposta imune antitumoral gera autoanticorpos que, por mimetismo molecular ou reatividade cruzada, reconhecem e lesam antígenos em tecidos saudáveis.
- Ataque a Tecidos Normais: Estes autoanticorpos podem mediar danos significativos. Na Síndrome Miastênica de Eaton-Lambert (SEL), autoanticorpos contra canais de cálcio voltagem-dependentes (VGCCs) tipo P/Q nas terminações nervosas pré-sinápticas diminuem o influxo de cálcio, reduzindo a liberação de acetilcolina e causando fraqueza muscular que caracteristicamente melhora com o exercício repetitivo. Na Encefalite Límbica Paraneoplásica, anticorpos como anti-Hu (ANNA-1), anti-Yo (PCA-1), anti-CV2/CRMP5, anti-Ma2 e anti-amfifisina atacam antígenos neuronais, resultando em alterações cognitivas, convulsões, distúrbios psiquiátricos e déficits neurológicos focais. A resposta imune também pode direcionar-se a outros tecidos, incluindo glândulas endócrinas.
Classificação das Síndromes Paraneoplásicas
As síndromes paraneoplásicas (SPs) são classificadas com base nos sistemas orgânicos primariamente afetados, o que facilita a abordagem diagnóstica e o manejo clínico. A heterogeneidade dessas manifestações reflete a diversidade dos mecanismos patogênicos subjacentes.
Síndromes Paraneoplásicas Endócrinas
Estas síndromes decorrem de desregulação hormonal, frequentemente pela produção ectópica de hormônios, peptídeos ou fatores hormonais pelo tumor, ou, menos comumente, por respostas imunes contra glândulas endócrinas.
- Síndrome de Cushing Ectópica: Associada principalmente ao Carcinoma de Pequenas Células do Pulmão (CPCP), tumores carcinoides e carcinoma pancreático. Caracteriza-se por hipercortisolismo (manifestado por ganho de peso central, hipertensão arterial, hiperglicemia, fraqueza muscular proximal, entre outros) devido à secreção tumoral de ACTH.
- Síndrome da Secreção Inapropriada do Hormônio Antidiurético (SIADH): Frequentemente associada ao CPCP, cursa com hiponatremia hiposmolar euvolêmica devido à produção ectópica de ADH.
- Hipercalcemia da Malignidade: Complicação metabólica comum, cujos principais mecanismos incluem: (1) Hipercalcemia Humoral da Malignidade (HHM), mediada pela secreção de Peptídeo Relacionado ao Hormônio da Paratireoide (PTHrP) (causa mais frequente); (2) Metástases osteolíticas com liberação local de fatores que estimulam osteoclastos; (3) Produção tumoral de citocinas osteolíticas (ex: TNF, IL-6); (4) Produção ectópica de calcitriol (1,25-dihidroxivitamina D), particularmente em linfomas; (5) Rara produção ectópica de PTH. Está comumente associada a carcinomas de células escamosas (pulmão), carcinoma de células renais, mieloma múltiplo, câncer de mama e linfomas.
- Hipoglicemia Paraneoplásica: Tipicamente grave e persistente, pode ser causada por: (1) Secreção de Fator de Crescimento Semelhante à Insulina tipo 2 (IGF-II) por tumores não-pancreáticos, especialmente de origem mesenquimal; (2) Produção de anticorpos anti-insulina (raro); (3) Consumo excessivo de glicose pelo tumor; (4) Insuficiência hepática induzida pelo tumor.
Síndromes Paraneoplásicas Neurológicas
Envolvem o sistema nervoso central, periférico ou a junção neuromuscular, frequentemente mediadas por mecanismos autoimunes desencadeados por antígenos compartilhados entre o tumor e o tecido neural (antígenos onconeurais).
- Síndrome Miastênica de Lambert-Eaton (SEL): Associada em cerca de 50-60% dos casos ao CPCP. É uma doença autoimune da junção neuromuscular pré-sináptica, causada por autoanticorpos contra canais de cálcio voltagem-dependentes (VGCCs) tipo P/Q. Clinicamente, manifesta-se por fraqueza muscular proximal, hiporreflexia e disfunção autonômica, com melhora característica da força após contração voluntária repetida (facilitação pós-exercício).
- Encefalite Límbica Paraneoplásica: Síndrome rara associada a diversos autoanticorpos onconeurais (ex: anti-Hu [ANNA-1], anti-Ma2, anti-CV2/CRMP5, anti-amfifisina; anti-Yo [PCA-1] mais associado à degeneração cerebelar). Causa disfunção do sistema límbico, manifestando-se com alterações agudas ou subagudas de memória, distúrbios psiquiátricos (ansiedade, depressão, alucinações), convulsões e déficits neurológicos focais.
- Outras Neuropatias Paraneoplásicas: Incluem um espectro variado de síndromes, como degeneração cerebelar paraneoplásica, neuropatias sensoriais, motoras, autonômicas ou mistas, e opsoclonus-mioclonus.
Síndromes Paraneoplásicas Dermatológicas
Manifestações cutâneas específicas que podem ser um marcador precoce de malignidade interna.
- Acantose Nigricans Maligna: Caracterizada por hiperqueratose e hiperpigmentação aveludada da pele, com aspecto espessado, localizada preferencialmente em áreas de dobras (axilas, pescoço, virilhas) e, por vezes, mucosas, palmas e plantas (neste último caso, denominada historicamente acroqueratose paraneoplásica ou hiperceratose palmoplantar). A forma paraneoplásica distingue-se pela instalação abrupta, progressão rápida e maior extensão em adultos, estando fortemente associada a adenocarcinomas, particularmente os de origem gastrointestinal (estômago > cólon, pâncreas) e, menos frequentemente, esôfago.
Síndromes Paraneoplásicas Hematológicas
Alterações envolvendo as linhagens celulares sanguíneas ou o sistema de coagulação.
- Tromboflebite Migratória (Sinal de Trousseau): Caracterizada por episódios recorrentes de trombose venosa superficial ou profunda em locais variados e inesperados. Reflete um estado de hipercoagulabilidade induzido pela liberação de fatores pró-coagulantes tumorais. É classicamente associada a adenocarcinomas, com destaque para os de pâncreas e estômago.
- Anemia: Pode ter múltiplas causas no paciente oncológico, mas pode ser uma manifestação paraneoplásica em alguns casos, como no carcinoma de células renais (CCR).
- Eritrocitose: Aumento da massa eritrocitária, menos comum que a anemia, mas descrita como manifestação paraneoplásica associada à produção ectópica de eritropoietina, particularmente em CCR e outros tumores.
Outras Síndromes Paraneoplásicas Relevantes
Manifestações sistêmicas ou reumatológicas também podem ocorrer.
- Manifestações Sistêmicas do Carcinoma de Células Renais (CCR): Além da hipercalcemia (por PTHrP ou metástases), anemia e eritrocitose, o CCR pode cursar com disfunção hepática não metastática (Síndrome de Stauffer, caracterizada por elevação de fosfatase alcalina e outras enzimas hepáticas, prolongamento do tempo de protrombina, sem invasão hepática pelo tumor), febre de origem indeterminada e caquexia.
- Caquexia Neoplásica: Síndrome complexa caracterizada por perda de peso involuntária e progressiva (principalmente de massa muscular esquelética, com ou sem perda de gordura), anorexia, astenia e inflamação sistêmica. É mediada por citocinas pró-inflamatórias (TNF-α, IL-6, IL-1) e outros fatores tumorais que alteram o metabolismo energético e proteico.