Rastreamento oncológico, ou screening, é uma estratégia fundamental em saúde pública para detecção precoce do câncer em indivíduos assintomáticos. O objetivo é identificar lesões pré-cancerosas ou câncer em estágio inicial, aumentando chances de cura e sobrevida, com intervenções terapêuticas mais eficazes e menos invasivas.
Rastreamento Oncológico: Princípios e Critérios
Para que um programa de rastreamento oncológico seja eficaz, critérios rigorosos devem ser considerados para garantir sua efetividade:
Principais Critérios para Programas de Rastreamento
- Doença Relevante: A doença deve ser um problema de saúde pública com alta incidência/mortalidade.
- Teste Adequado: Alta sensibilidade e especificidade, seguro, aceitável e custo-efetivo.
- Tratamento Eficaz: Tratamento disponível e com impacto positivo no prognóstico em estágios iniciais.
- Valores Preditivos: VPP (probabilidade de um positivo ter a doença) e VPN (probabilidade de um negativo não ter a doença). Estes valores dependem da sensibilidade e especificidade do teste, bem como da prevalência da doença rastreada e impactam diretamente a tomada de decisão clínica.
A história natural da doença deve ser bem compreendida, permitindo intervenções oportunas. Evidências científicas robustas são essenciais para comprovar que o rastreamento reduz morbidade/mortalidade, superando potenciais danos (sobrediagnóstico e sobretratamento). Finalmente, um sistema de saúde capaz de suportar o programa, desde a infraestrutura para os exames até acesso ao tratamento para os casos positivos, assegurando que a detecção precoce se traduza em benefício real para o paciente.
Marcadores Tumorais: Alfa-fetoproteína (AFP) no Rastreamento do Carcinoma Hepatocelular (CHC)
A alfa-fetoproteína (AFP) é um marcador tumoral utilizado no rastreamento do carcinoma hepatocelular (CHC). Em adultos, níveis elevados de AFP são fortemente associados ao CHC, tumores de células germinativas não seminomatosos e, menos frequentemente, a outras neoplasias.
No contexto do rastreamento do CHC, a AFP é utilizada em pacientes de alto risco, como portadores de cirrose hepática de qualquer etiologia (hepatites B e C, álcool, hemocromatose, doença hepática gordurosa não alcoólica) e pacientes com hepatite B crônica, mesmo sem cirrose. Geralmente, a dosagem da AFP é combinada com ultrassonografia abdominal a cada 6 meses. A elevação da AFP, especialmente acima de 400 ng/mL, aumenta a suspeita de CHC. Entretanto, a interpretação dos níveis de AFP requer cautela, considerando suas limitações de sensibilidade e especificidade. A AFP também pode estar elevada em outras condições, como tumores de células germinativas e hepatites agudas, e nem todos os CHC produzem AFP em níveis detectáveis.
O diagnóstico de CHC é confirmado por exames de imagem como tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnética (RM) com contraste, que demonstram características específicas do tumor, como hipervascularização na fase arterial e “washout” na fase venosa portal ou tardia. A biópsia hepática é reservada para casos inconclusivos. Além do rastreamento e diagnóstico, a AFP auxilia no monitoramento da resposta terapêutica do CHC, com a queda dos níveis indicando uma resposta positiva ao tratamento.
Rastreamento do Câncer Colorretal (CCR)
O rastreamento do câncer colorretal (CCR) visa detectar a doença em estágios iniciais, quando o tratamento é mais eficaz, e identificar pólipos adenomatosos, lesões precursoras do CCR. A remoção dos pólipos interrompe a sequência adenoma-carcinoma, prevenindo o desenvolvimento do câncer.
Métodos de Rastreamento
- Colonoscopia: Padrão-ouro para o rastreamento do CCR, permitindo a visualização direta de todo o cólon e reto, a detecção, remoção de pólipos (polipectomia) e a coleta de biópsias.
- Pesquisa de Sangue Oculto nas Fezes (PSOF): Inclui o teste do guáiaco (PSOFg) e o teste imunoquímico fecal (FIT). O FIT é mais sensível e específico para a detecção de sangue humano, não sendo afetado pela dieta ou medicamentos. Resultados positivos indicam a necessidade de colonoscopia.
- Teste de DNA Fecal: Analisa alterações genéticas associadas ao câncer e a pólipos nas fezes.
- Sigmoidoscopia Flexível: Examina o reto e o sigmoide. Menos invasiva que a colonoscopia, mas não visualiza todo o cólon. Se pólipos avançados forem detectados, a colonoscopia completa é necessária.
- Colonoscopia Virtual (TC do cólon): Utiliza tomografia computadorizada para criar imagens do cólon. Alternativa à colonoscopia.
Recomendações de Rastreamento
As recomendações variam de acordo com o risco:
- Risco Médio (a partir de 45 anos): Colonoscopia a cada 10 anos, FIT anual ou outros métodos com diferentes frequências (vide diretrizes).
- Risco Aumentado (histórico familiar, pólipos, síndromes hereditárias como PAF e Síndrome de Lynch, DII): Rastreamento mais precoce e frequente, geralmente com colonoscopia. Em casos de histórico familiar, o rastreamento inicia 10 anos antes da idade do diagnóstico do parente mais jovem afetado ou aos 40 anos, o que vier primeiro.
Intervalos de Rastreamento Pós-Polipectomia
O intervalo para a próxima colonoscopia após a remoção de pólipos depende do número, tamanho e histologia dos pólipos removidos. Adenomas de alto risco (vilosos, com displasia de alto grau ou maiores que 1cm) exigem intervalos mais curtos, tipicamente 3 anos. Pacientes sem pólipos ou com poucos pólipos de baixo risco podem retornar ao rastreamento de rotina (10 anos).
Técnicas Avançadas
A cromoscopia, com uso de corantes, e a colonoscopia de alta definição aumentam a detecção de lesões planas, como adenomas planos.
Rastreamento do Câncer de Próstata
O rastreamento do câncer de próstata é um tema controverso, com recomendações divergentes entre as principais organizações de saúde. O Ministério da Saúde e a OMS não recomendam o rastreamento populacional universal para câncer de próstata, sugerindo a investigação apenas em pacientes sintomáticos. Em contraste, a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU) recomenda o rastreamento individualizado em homens a partir dos 50 anos (ou 45 anos para aqueles com alto risco e expectativa de vida superior a 10 anos).
Métodos de Rastreamento
Os principais métodos de rastreamento do câncer de próstata são:
- PSA (Antígeno Prostático Específico): Uma glicoproteína produzida pelas células prostáticas. Níveis elevados podem indicar câncer, mas também outras condições como hiperplasia prostática benigna (HPB) e prostatite, impactando sua especificidade. A interpretação dos níveis de PSA deve ser feita com cautela e em conjunto com outros exames.
- Exame de Toque Retal: Permite avaliar o tamanho, a forma e a consistência da próstata, buscando nódulos ou áreas suspeitas. É um exame complementar à dosagem de PSA.
A SBU preconiza a biópsia prostática em casos de toque retal alterado, PSA elevado (ajustado por idade), alta densidade de PSA (calculada pela razão entre PSA total e volume prostático obtido por ultrassom transretal, sendo valores acima de 0,15 ng/mL/cm³ sugestivos de maior risco, mas não diagnósticos), baixa relação PSA livre/total e aumento rápido do PSA. A biópsia é o procedimento que confirma o diagnóstico de câncer de próstata.
Fatores de Risco e Tomada de Decisão Compartilhada
Idade avançada, histórico familiar de câncer de próstata (especialmente em parentes de primeiro grau) e etnia negra são fatores de risco para a doença. A tomada de decisão compartilhada é essencial, considerando os riscos de sobrediagnóstico e sobretratamento, com potenciais efeitos colaterais como disfunção erétil e incontinência urinária. A expectativa de vida também deve ser considerada, com maior benefício em pacientes com expectativa superior a 10 anos.
Homens com fatores de risco podem iniciar o rastreamento mais cedo (45 anos).
Rastreamento Oportunístico
O rastreamento oportunístico, oferecido durante consulta por outros motivos, demanda a tomada de decisão compartilhada, informando o paciente sobre potenciais benefícios e riscos, incluindo sobrediagnóstico e sobretratamento, antes que ele tome uma decisão.
Rastreamento de Outros Tipos de Câncer
Além do câncer colorretal e de próstata, discutidos anteriormente, o rastreamento de outros tipos de câncer também é crucial para a detecção precoce e manejo adequado. Abordaremos as principais recomendações e métodos para as seguintes neoplasias:
Câncer de Mama
A mamografia é o principal método de rastreamento. As diretrizes variam, recomendando exames anuais ou bienais para mulheres a partir dos 40 ou 50 anos, a depender do histórico familiar e fatores de risco individuais. O exame clínico das mamas, realizado por profissional de saúde, pode complementar o rastreamento, mas não substitui a mamografia.
Câncer de Colo do Útero
O rastreamento é realizado principalmente pelo exame citopatológico (Papanicolau), que busca alterações celulares precursoras do câncer. A testagem para HPV também é utilizada, especialmente em países com alta cobertura vacinal. O intervalo e a faixa etária para o rastreamento variam conforme as diretrizes, geralmente iniciando após o início da atividade sexual.
Câncer de Pulmão
A tomografia computadorizada de baixa dose (TCBD) é recomendada para indivíduos de alto risco, como fumantes ou ex-fumantes com alta carga tabágica (geralmente entre 50 e 80 anos e com carga tabágica de 20 maços-ano).
Câncer de Pele
O rastreamento envolve o autoexame regular da pele e exame clínico por profissional de saúde. É fundamental para indivíduos com alto risco, como histórico familiar ou exposição solar excessiva. A população em geral se beneficia da educação sobre os sinais de alerta do câncer de pele, como lesões que mudam de cor, tamanho ou formato, ou que não cicatrizam.
Câncer de Boca
O rastreamento é feito pelo exame clínico da cavidade oral, buscando lesões suspeitas como úlceras, manchas brancas ou vermelhas persistentes. A vigilância é crucial em grupos de alto risco, como fumantes e usuários de álcool e tabaco em excesso.
Câncer Gástrico
No Brasil, não há programas de rastreamento populacional estabelecidos. Estratégias de vigilância podem ser consideradas em pacientes de alto risco, como portadores de metaplasia intestinal, gastrite atrófica, infecção por H. pylori ou histórico familiar da doença. Nestes casos, a endoscopia digestiva alta com biópsias pode ser utilizada.
Conclusão
O rastreamento oncológico é crucial para a detecção precoce do câncer, permitindo intervenções terapêuticas mais eficazes e, consequentemente, impactando positivamente a sobrevida dos pacientes. Este artigo abordou os princípios, métodos e avaliação de testes de rastreamento oncológico, com ênfase nos marcadores tumorais, exames de imagem e suas aplicações específicas para diferentes tipos de câncer. A individualização das estratégias de rastreamento é fundamental, considerando os fatores de risco de cada paciente, como idade, sexo, histórico familiar, hábitos de vida e exposições ambientais. As preferências individuais do paciente devem ser consideradas para garantir adesão ao programa de rastreamento. A tomada de decisão compartilhada entre médico e paciente é essencial para um rastreamento consciente e informado, considerando os benefícios e riscos potenciais. Profissionais de saúde devem se manter atualizados sobre as diretrizes mais recentes, incluindo as da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e do Instituto Nacional de Câncer (INCA), para oferecer o melhor cuidado possível. Conhecer as modalidades de rastreamento, suas indicações, limitações e a interpretação adequada dos resultados é fundamental para a prática clínica. Para o câncer de mama, a mamografia é o principal método de rastreamento. O rastreamento do câncer de colo uterino envolve o exame citopatológico (Papanicolau) e, mais recentemente, a testagem para HPV. Para o câncer de pulmão, indivíduos de alto risco, como fumantes e ex-fumantes com alta carga tabágica, podem se beneficiar do rastreamento com tomografia computadorizada de baixa dose (TCBD). A abordagem integral e multidisciplinar no cuidado oncológico é essencial. O rastreamento é uma etapa importante, mas deve ser complementado por diagnóstico preciso, tratamento adequado e acompanhamento contínuo. A educação em saúde e a conscientização sobre a importância do rastreamento e da tomada de decisão compartilhada empoderam os pacientes no cuidado de sua saúde.