As Doenças Inflamatórias Intestinais (DII), compreendendo a Doença de Crohn (DC) e a Retocolite Ulcerativa (RCU), são condições crônicas caracterizadas primariamente pela inflamação do trato gastrointestinal. No entanto, a natureza sistêmica dessas enfermidades frequentemente resulta em manifestações que se estendem para além do intestino, denominadas Manifestações Extraintestinais (MEI). Este artigo oferece uma visão abrangente das MEI, abordando sua classificação, fisiopatologia e impacto clínico detalhado, visando fornecer aos profissionais de saúde um guia conciso e atualizado sobre o tema.
Classificação e Fisiopatologia das MEI na DII
As MEI são comuns, podem afetar uma ampla gama de órgãos e sistemas – como articulações, pele, olhos, fígado e vias biliares – e podem preceder, acompanhar ou surgir após o diagnóstico da DII, impactando significativamente o quadro clínico e a qualidade de vida do paciente. A compreensão da sua classificação e dos mecanismos fisiopatológicos subjacentes é crucial para o manejo clínico adequado.
Classificação das MEI
Uma abordagem prática e clinicamente relevante para classificar as MEI baseia-se na sua correlação temporal e de atividade com a doença intestinal subjacente. As MEI são geralmente divididas em duas categorias principais:
- MEI Associadas à Atividade da DII (Curso Paralelo): Estas manifestações tendem a seguir um curso clínico que espelha a atividade inflamatória intestinal. As exacerbações e remissões dos sintomas extraintestinais geralmente coincidem com os surtos e períodos de controle da DII. Consequentemente, o tratamento direcionado ao controle eficaz da inflamação intestinal costuma levar à melhora ou resolução destas MEI. Exemplos representativos incluem:
- Artrite periférica (especialmente o tipo 1, oligoarticular, assimétrica, de grandes articulações)
- Eritema nodoso (paniculite septal)
- Episclerite (inflamação da camada superficial da esclera)
- Úlceras aftosas orais
- Uveíte (embora algumas fontes a classifiquem como independente, frequentemente demonstra associação com atividade)
- Anemia ferropriva (secundária à perda sanguínea crônica pela inflamação colônica)
- MEI Independentes da Atividade da DII: Em contraste, estas manifestações seguem um curso clínico próprio, que não se correlaciona diretamente com as flutuações da atividade inflamatória intestinal. Podem persistir, iniciar ou progredir mesmo durante períodos de remissão clínica e endoscópica da DII. O tratamento focado exclusivamente no controle da doença intestinal pode ter pouco ou nenhum impacto sobre a evolução destas MEI. Exemplos notáveis são:
- Espondiloartrites (incluindo Espondilite Anquilosante e Sacroileíte, frequentemente associadas ao HLA-B27)
- Colangite Esclerosante Primária (CEP), uma doença colestática crônica fortemente associada à RCU
- Pioderma Gangrenoso (dermatose neutrofílica ulcerativa cuja relação com a atividade da DII é variável, podendo seguir um curso independente em muitos casos)
- Osteopenia/Osteoporose (condição multifatorial associada à inflamação crônica, má absorção de cálcio/vitamina D e uso de corticosteroides, podendo persistir mesmo em remissão)
- Esteatose hepática (Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica – DHGNA), cuja relação exata com a atividade da DII não é totalmente compreendida e pode ocorrer independentemente.
Fisiopatologia Geral das MEI
A fisiopatologia subjacente às MEI na DII é consideravelmente complexa, multifatorial e ainda não completamente elucidada. Envolve uma interação dinâmica entre predisposição genética, fatores ambientais, alterações da microbiota intestinal (disbiose) e, crucialmente, uma resposta imune desregulada que transcende os limites do trato gastrointestinal.
Diversos mecanismos patogênicos foram propostos e contribuem para o desenvolvimento das MEI:
- Inflamação Sistêmica e Mediadores Inflamatórios: A inflamação crônica na mucosa intestinal leva à produção e liberação sistêmica de uma variedade de mediadores inflamatórios, incluindo citocinas pró-inflamatórias como o Fator de Necrose Tumoral alfa (TNF-alfa), Interleucina-1 (IL-1) e Interleucina-6 (IL-6). Essas moléculas podem circular e induzir respostas inflamatórias em órgãos distantes.
- Disfunção da Barreira Intestinal e Translocação Microbiana: A integridade comprometida da barreira epitelial intestinal, característica da DII, permite o aumento da permeabilidade e a subsequente translocação de produtos bacterianos (como o lipopolissacarídeo – LPS, um componente da parede de bactérias Gram-negativas) e outros antígenos da luz intestinal para a circulação sistêmica. Essa exposição antigênica aberrante pode desencadear e perpetuar a ativação imune sistêmica.
- Resposta Imune Desregulada e Reatividade Cruzada: Acredita-se que haja uma desregulação da resposta imune adaptativa e inata. Linfócitos T e B ativados no intestino podem migrar para sítios extraintestinais. Além disso, pode ocorrer reatividade cruzada, onde a resposta imune direcionada a antígenos microbianos ou intestinais reconhece erroneamente epítopos semelhantes em tecidos extraintestinais, levando a um ataque autoimune ou imunomediado. A deposição de imunocomplexos circulantes também pode desempenhar um papel em algumas manifestações.
- Fatores Genéticos: A predisposição genética influencia a suscetibilidade ao desenvolvimento de DII e também de MEI específicas. Por exemplo, a presença do alelo HLA-B27 confere um risco significativamente aumentado para o desenvolvimento de espondiloartrites em pacientes com DII.
- Disbiose: Alterações na composição e função da microbiota intestinal são cada vez mais reconhecidas como contribuintes para a inflamação intestinal e sistêmica, podendo influenciar o risco e a natureza das MEI.
A interação desses múltiplos fatores resulta em um processo inflamatório sistêmico que se manifesta clinicamente como as diversas MEI observadas em pacientes com Doença de Crohn e Retocolite Ulcerativa.
Manifestações Articulares: Artrite Periférica e Espondiloartrites
As manifestações articulares representam um grupo comum de complicações extraintestinais (MEI) associadas às Doenças Inflamatórias Intestinais (DII). Essas manifestações podem envolver tanto as articulações periféricas quanto o esqueleto axial (espondiloartrites), apresentando padrões clínicos e correlações distintas com a atividade da doença intestinal subjacente. A presença dessas condições pode indicar maior gravidade da DII e influenciar a estratégia terapêutica.
Artrite Periférica
A artrite periférica é uma das MEI mais frequentes, encontrada em pacientes com DII, especialmente na Doença de Crohn. Caracteriza-se tipicamente por uma oligoartrite (acometendo poucas articulações), que afeta predominantemente grandes articulações dos membros inferiores (como joelhos e tornozelos) de forma assimétrica. Clinicamente, pode ser migratória e geralmente não é erosiva. Os sintomas incluem dor articular, edema, rigidez e limitação da amplitude de movimento.
Com base na correlação com a atividade inflamatória intestinal, a artrite periférica associada à DII pode ser classificada em dois tipos principais:
- Tipo 1: Demonstra um curso que acompanha a atividade da DII. As exacerbações dos sintomas articulares frequentemente ocorrem durante surtos de inflamação intestinal, e o controle eficaz da doença intestinal geralmente leva à melhora ou resolução da artrite.
- Tipo 2: Apresenta um curso independente da atividade inflamatória intestinal, podendo persistir mesmo quando a DII está em remissão.
O manejo da artrite periférica associada à DII, especialmente a do tipo 1, foca primariamente no tratamento otimizado da doença inflamatória intestinal subjacente. Medidas adicionais, como o uso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) ou, em casos selecionados, imunossupressores, podem ser consideradas.
Espondiloartrites (Artrite Axial)
As espondiloartrites (EpA), ou artrite axial, associadas à DII incluem duas entidades principais: a sacroileíte e a espondilite anquilosante (EA). A sacroileíte corresponde à inflamação das articulações sacroilíacas e é uma manifestação comum. A apresentação clínica cardinal é a dor lombar de caráter inflamatório, que classicamente piora com o repouso (notadamente pela manhã ao despertar) e melhora com a atividade física.
A espondilite anquilosante representa uma forma crônica e potencialmente mais grave de inflamação axial, que pode afetar toda a coluna vertebral e, em longo prazo, levar à fusão das vértebras.
Uma característica distintiva das espondiloartrites associadas à DII é seu curso clínico, que tende a ser independente da atividade da doença intestinal. Os sintomas articulares axiais e a progressão radiográfica podem continuar mesmo quando a inflamação intestinal está controlada e a DII em remissão. Consequentemente, o tratamento da DII pode não ter um impacto significativo sobre a evolução da espondiloartrite.
Existe uma associação genética bem estabelecida entre as espondiloartrites e o antígeno leucocitário humano HLA-B27. A presença deste alelo confere um risco aumentado para o desenvolvimento de EpA em pacientes com DII, contudo, sua ausência não exclui o diagnóstico.
Manifestações Cutâneas: Eritema Nodoso e Pioderma Gangrenoso
As manifestações cutâneas representam um grupo relevante de manifestações extraintestinais (MEI) associadas às Doenças Inflamatórias Intestinais (DII), como a Doença de Crohn (DC) e a Retocolite Ulcerativa (RCU). Elas são relativamente comuns e podem ser classificadas em categorias distintas com base na sua relação com a DII:
- Reativas: Manifestações que estão tipicamente associadas à atividade inflamatória da doença intestinal subjacente, como o eritema nodoso. Sua melhora geralmente acompanha o controle da DII.
- Específicas: Representam uma extensão direta do processo inflamatório granulomatoso da DII para a pele.
- Relacionadas a outras causas: Podem surgir secundariamente a deficiências nutricionais (resultantes da má absorção ou dieta restritiva) ou como efeitos colaterais de medicações utilizadas no tratamento da DII.
A patogênese exata dessas lesões cutâneas é multifatorial e não completamente elucidada, mas acredita-se que envolva mecanismos imunomediados, como deposição de imunocomplexos, ativação de células inflamatórias (incluindo neutrófilos) e a disseminação sistêmica de mediadores inflamatórios e produtos bacterianos (via aumento da permeabilidade intestinal). Duas das manifestações cutâneas mais significativas e discutidas no contexto das DII são o eritema nodoso e o pioderma gangrenoso.
Eritema Nodoso (EN)
O eritema nodoso é uma das manifestações cutâneas mais comuns associadas às DII, ocorrendo com maior frequência na Doença de Crohn, mas também presente na Retocolite Ulcerativa. É definido histologicamente como uma paniculite septal, caracterizada pela inflamação dos septos do tecido adiposo subcutâneo, sem vasculite primária.
- Apresentação Clínica: Manifesta-se classicamente pelo surgimento de nódulos subcutâneos eritematosos, tipicamente dolorosos à palpação, quentes e bem delimitados. A localização mais frequente é a região pré-tibial, muitas vezes de forma simétrica. As lesões geralmente regridem sem deixar cicatrizes ou ulceração. Sintomas sistêmicos como febre, mal-estar e artralgias podem acompanhar o quadro cutâneo.
- Fisiopatologia: É considerado uma reação de hipersensibilidade tardia a diversos estímulos antigênicos, incluindo aqueles relacionados à inflamação intestinal ou a antígenos bacterianos translocados.
- Relação com Atividade da DII: O eritema nodoso é classicamente classificado como uma MEI que acompanha a atividade da DII. A intensidade e a presença das lesões frequentemente correlacionam-se com as fases de atividade inflamatória intestinal, e a melhora do quadro intestinal com tratamento geralmente leva à resolução do eritema nodoso. No entanto, casos persistentes ou recorrentes podem ocorrer mesmo com a DII controlada.
- Diagnóstico e Manejo: O diagnóstico é primariamente clínico, baseado nas características das lesões. A biópsia pode confirmar a paniculite septal e excluir outras condições. O manejo foca no controle da DII subjacente. Medidas sintomáticas incluem repouso, elevação dos membros inferiores e, em alguns casos, uso cauteloso de anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs) ou corticosteroides sistêmicos para alívio da dor e inflamação, especialmente em casos refratários.
Pioderma Gangrenoso (PG)
O pioderma gangrenoso é uma dermatose neutrofílica ulcerativa rara, porém potencialmente devastadora, associada a diversas condições sistêmicas, incluindo as DII (com maior frequência na Retocolite Ulcerativa, mas também na Doença de Crohn), artrites inflamatórias e gamopatias monoclonais.
- Apresentação Clínica: A lesão inicial pode ser uma pápula, pústula ou nódulo que rapidamente evolui para uma úlcera dolorosa e progressiva. As úlceras são características, apresentando bordas irregulares, subminadas, elevadas e de coloração violácea ou eritematosa escura, com um leito frequentemente necrótico ou purulento. Podem ocorrer em qualquer parte do corpo, mas são mais comuns nas extremidades inferiores, especialmente na região pré-tibial.
- Fenômeno de Patergia: Uma característica clínica importante, embora não universal, é o fenômeno de patergia, onde o trauma cutâneo mínimo (como picadas de agulha, biópsias ou debridamentos cirúrgicos) pode desencadear o surgimento de novas lesões ou a exacerbação das existentes.
- Fisiopatologia: A patogênese envolve disfunção imunológica, particularmente uma resposta inflamatória exacerbada com hiperatividade de neutrófilos e desregulação de citocinas, levando à destruição tecidual.
- Relação com Atividade da DII: Ao contrário do eritema nodoso, a relação do pioderma gangrenoso com a atividade da DII é variável. Em alguns pacientes, a atividade do PG acompanha a da DII, mas em muitos outros, pode seguir um curso independente, persistindo ou surgindo mesmo quando a doença intestinal está em remissão. Nem sempre responde adequadamente ao tratamento direcionado exclusivamente à DII.
- Diagnóstico e Manejo: O diagnóstico é de exclusão, baseado na apresentação clínica típica após descartar outras causas de ulceração cutânea (infecções, vasculites, neoplasias). A biópsia cutânea pode mostrar um infiltrado neutrofílico dérmico massivo, mas não é patognomônica. O manejo é complexo e exige frequentemente uma abordagem sistêmica. Além dos cuidados locais rigorosos com a ferida, as opções terapêuticas incluem corticosteroides (tópicos de alta potência ou sistêmicos), imunossupressores como ciclosporina e azatioprina, e terapias biológicas, notadamente os agentes anti-TNF (como infliximabe), que têm demonstrado eficácia. O controle da DII subjacente é fundamental, mas frequentemente são necessárias terapias específicas para o PG.
Manifestações Oculares: Episclerite e Uveíte
As Doenças Inflamatórias Intestinais (DII) podem apresentar manifestações extraintestinais que acometem os olhos, sendo a episclerite e a uveíte as condições inflamatórias mais relevantes neste contexto. Ambas são mediadas por mecanismos imunológicos, refletindo a natureza sistêmica da resposta inflamatória desregulada presente na DII, com processos fisiopatológicos compartilhados entre o intestino e estruturas oculares.
Episclerite
A episclerite, definida como a inflamação da episclera (a camada vascularizada superficial da esclera), constitui a manifestação ocular mais comum associada às DII. Clinicamente, caracteriza-se por hiperemia ocular (vermelhidão), que pode ser setorial ou difusa, acompanhada de desconforto ou dor leve. Diversas fontes indicam que a episclerite frequentemente está associada à atividade da doença inflamatória intestinal subjacente, podendo evoluir em paralelo com as exacerbações intestinais. Apesar do quadro clínico, é uma condição geralmente autolimitada e que não costuma resultar em perda de acuidade visual.
Uveíte
A uveíte consiste na inflamação da úvea, a camada média vascular do olho que compreende a íris, o corpo ciliar e a coroide. Dependendo das estruturas predominantemente acometidas, pode ser classificada como uveíte anterior, intermediária ou posterior. A sintomatologia clássica inclui dor ocular, fotofobia intensa, hiperemia pericerática e visão turva. A uveíte pode estar associada à atividade da DII, embora essa correlação possa ser variável e, segundo algumas classificações, pode até seguir um curso independente em certos casos. Diferentemente da episclerite, a uveíte representa uma condição de maior gravidade, com risco intrínseco de complicações significativas, como formação de sinéquias posteriores, glaucoma secundário e catarata, podendo levar à perda visual permanente se não diagnosticada e tratada de forma precoce e adequada. Por essa razão, a suspeita de uveíte exige avaliação oftalmológica especializada e, frequentemente, tratamento específico, como corticosteroides tópicos ou sistêmicos, para controle da inflamação e prevenção de sequelas visuais.
O reconhecimento e manejo diligente destas manifestações oculares inflamatórias são componentes cruciais na abordagem multidisciplinar e integral do paciente portador de Doença Inflamatória Intestinal.
Manifestações Hepatobiliares: Esteatose, CEP, Colelitíase e Outras
O sistema hepatobiliar representa um sítio frequente para manifestações extraintestinais (MEI) em pacientes com Doença Inflamatória Intestinal (DII), abrangendo um espectro de condições que variam desde alterações enzimáticas assintomáticas até doenças hepáticas graves. A fisiopatologia dessas complicações é complexa e multifatorial, envolvendo a inflamação sistêmica, a resposta imune desregulada, a disfunção da barreira intestinal com translocação bacteriana para a circulação sistêmica, a disbiose e a predisposição genética.
Colangite Esclerosante Primária (CEP)
A Colangite Esclerosante Primária (CEP) é uma doença hepática colestática crônica, caracterizada por inflamação, fibrose progressiva e estenoses multifocais dos ductos biliares intra e extra-hepáticos. Existe uma forte associação epidemiológica entre a CEP e a DII, particularmente a Retocolite Ulcerativa (RCU); estima-se que 70-80% dos pacientes com CEP apresentem RCU concomitante, e a prevalência de CEP é significativamente aumentada em portadores de RCU. Uma característica distintiva da CEP é seu curso clínico independente da atividade da doença intestinal subjacente. A progressão da CEP pode ocorrer mesmo quando a RCU está em remissão, e a colectomia não altera a evolução da doença hepática.
O diagnóstico da CEP baseia-se na combinação de achados clínicos, laboratoriais e de imagem. Laboratorialmente, observa-se um padrão colestático com elevação da fosfatase alcalina (FA) e da gama-glutamiltransferase (GGT). A confirmação diagnóstica e a avaliação da extensão da doença são realizadas por métodos de imagem das vias biliares, como a colangiorressonância magnética (colangio-RM) ou, em casos selecionados, a colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), que demonstram as estenoses e dilatações ductais características. A CEP é uma condição progressiva com risco de complicações graves, incluindo cirrose biliar secundária, insuficiência hepática (podendo requerer transplante hepático) e um risco aumentado de desenvolvimento de colangiocarcinoma.
Esteatose Hepática Não Alcoólica (DHGNA) e Esteato-hepatite Não Alcoólica (EHNA)
A Doença Hepática Gordurosa Não Alcoólica (DHGNA), ou esteatose hepática, definida pelo acúmulo excessivo de gordura nos hepatócitos, é frequentemente associada à DII, com relatos de maior frequência na Doença de Crohn. Os mecanismos patogênicos envolvidos parecem incluir a inflamação sistêmica crônica, alterações na microbiota intestinal (disbiose), alterações na permeabilidade intestinal e o uso de medicamentos como corticosteroides. A DHGNA pode ocorrer independentemente da atividade inflamatória intestinal. É relevante notar que a esteatose simples pode progredir para Esteato-hepatite Não Alcoólica (EHNA), uma forma mais grave caracterizada por inflamação e dano hepatocelular, que por sua vez pode evoluir para fibrose avançada e cirrose.
Colelitíase
A formação de cálculos biliares (colelitíase) também pode ocorrer como complicação em pacientes com DII. O mecanismo principal, especialmente relevante na Doença de Crohn com acometimento do íleo terminal, envolve a má absorção de ácidos biliares. A redução do pool de ácidos biliares reabsorvidos leva a uma diminuição da concentração de sais biliares na bile, alterando sua solubilidade e favorecendo a precipitação do colesterol, resultando na formação de cálculos.
Hepatite Autoimune (HAI)
Embora menos frequente que a CEP ou a DHGNA, a Hepatite Autoimune (HAI) pode ocorrer em associação com a DII. A HAI é uma doença inflamatória crônica do fígado mediada por uma resposta autoimune direcionada aos hepatócitos. Acredita-se que a coexistência de HAI e DII possa decorrer de mecanismos imunopatogênicos compartilhados. A presença concomitante das duas condições exige avaliação diagnóstica cuidadosa e abordagens terapêuticas específicas para cada uma delas.
Cirrose Hepática
A cirrose hepática em pacientes com DII pode ser o estágio final de diferentes processos patológicos hepatobiliares associados. As principais etiologias incluem a progressão da Colangite Esclerosante Primária (levando à cirrose biliar secundária), formas avançadas de DHGNA/EHNA, e a Hepatite Autoimune concomitante. O uso prolongado de certos medicamentos também pode contribuir em casos específicos.
Complicações Hematológicas e Nutricionais: Anemia e Deficiências
A anemia constitui uma das complicações extraintestinais mais comuns nas Doenças Inflamatórias Intestinais (DII), como a Doença de Crohn (DC) e a Retocolite Ulcerativa (RCU). Sua etiologia é frequentemente multifatorial, envolvendo mecanismos complexos relacionados tanto à atividade inflamatória da doença quanto às suas consequências nutricionais.
Tipos de Anemia na DII
A abordagem da anemia em pacientes com DII exige a compreensão de seus diferentes subtipos e mecanismos subjacentes:
- Anemia Ferropriva: É a forma mais frequente, resultante primariamente da perda sanguínea crônica através da mucosa intestinal inflamada e ulcerada, especialmente em quadros com acometimento colônico significativo, como na RCU ou na colite de Crohn. A má absorção de ferro, particularmente na DC com envolvimento ileal, também contribui significativamente. A anemia ferropriva, tipicamente microcítica, demonstra uma forte correlação com a atividade inflamatória colônica.
- Anemia de Doença Crônica (ADC): Decorre do estado inflamatório sistêmico persistente característico das DII. A inflamação crônica interfere no metabolismo do ferro, promovendo sua sequestração no sistema reticuloendotelial, diminuindo a disponibilidade de ferro para a eritropoiese e podendo reduzir a produção de eritropoetina. A ADC geralmente se apresenta como normocítica.
- Anemia Mista: Em muitos casos, os pacientes apresentam uma combinação dos mecanismos de deficiência de ferro e inflamação crônica, resultando em um quadro de anemia mista.
Deficiências Nutricionais Associadas
A má absorção de nutrientes é uma consequência frequente das DII, especialmente na Doença de Crohn, devido à inflamação e/ou ressecção de segmentos do intestino delgado responsáveis pela absorção de micronutrientes específicos. As principais deficiências relacionadas à anemia e outras complicações incluem:
- Deficiência de Vitamina B12: A absorção de vitamina B12 ocorre exclusivamente no íleo terminal. Portanto, pacientes com Doença de Crohn que apresentam inflamação ou tenham sido submetidos à ressecção desta porção intestinal estão sob risco elevado de desenvolver deficiência de B12 devido à má absorção. Esta deficiência pode levar à anemia macrocítica e a manifestações neurológicas, como parestesias decorrentes de neuropatia periférica. Pacientes com RCU, cujo acometimento se restringe ao cólon, geralmente não apresentam comprometimento da absorção de B12.
- Deficiência de Folato: A deficiência de folato também pode contribuir para a anemia macrocítica em pacientes com DII. Suas causas podem incluir má absorção intestinal e, em alguns casos, o uso de determinados medicamentos (como a sulfasalazina).
- Outras Deficiências: Além do ferro, B12 e folato, a má absorção e a inflamação crônica podem levar a deficiências de outros micronutrientes importantes, como vitamina D e eletrólitos, contribuindo para a morbidade geral associada às DII.
A identificação e correção da anemia e das deficiências nutricionais são componentes essenciais no manejo integral do paciente com Doença Inflamatória Intestinal, impactando diretamente na qualidade de vida e na resposta ao tratamento da doença de base.
Outras Manifestações Extraintestinais e Impacto Sistêmico
Além das manifestações extraintestinais (MEIs) mais frequentemente discutidas, como as articulares, cutâneas, oculares e hepatobiliares, a Doença Inflamatória Intestinal (DII) está associada a outras complicações relevantes e a um impacto sistêmico significativo, que demandam atenção clínica especializada.
Eventos Tromboembólicos
Pacientes com DII apresentam um risco substancialmente aumentado de eventos tromboembólicos, tanto venosos quanto arteriais. A trombose venosa, em particular, é reconhecida como uma MEI. A fisiopatologia subjacente é multifatorial e intrinsecamente ligada ao estado inflamatório crônico característico da DII. A inflamação sistêmica promove disfunção endotelial e induz um estado de hipercoagulabilidade através de alterações complexas na cascata de coagulação. Esses fatores, combinados, criam um ambiente pró-trombótico que eleva o risco de trombose venosa profunda e embolia pulmonar.
Litíase Renal (Nefrolitíase)
A nefrolitíase é classificada como uma MEI que surge como consequência da DII ou de suas complicações. O risco aumentado de formação de cálculos renais em pacientes com DII está associado a diversos fatores:
- Desidratação crônica: Secundária à diarreia persistente.
- Má absorção de gordura e sais biliares: Particularmente relevante na Doença de Crohn com acometimento ou ressecção ileal. A má absorção de gordura leva ao aumento de ácidos graxos livres no lúmen colônico, que se ligam ao cálcio. Isso diminui a disponibilidade de cálcio para se ligar ao oxalato dietético, resultando em aumento da absorção colônica de oxalato (hiperoxalúria entérica).
- Redução da excreção urinária de citrato: O citrato é um inibidor da cristalização de sais de cálcio.
Consequentemente, o tipo de cálculo renal mais comum em pacientes com DII, especialmente na Doença de Crohn, é o de oxalato de cálcio. Menos frequentemente, podem ocorrer cálculos de ácido úrico, cuja formação é favorecida pela desidratação crônica e pelo pH urinário ácido.
O manejo da litíase renal nesses pacientes envolve:
- Medidas Preventivas: Hidratação adequada, restrição dietética de alimentos ricos em oxalato (ex: espinafre, chocolate, nozes), suplementação de cálcio (administrado junto às refeições para aumentar a ligação intestinal com o oxalato) e, em casos selecionados, uso de quelantes de oxalato (ex: colestiramina) ou suplementação de citrato de potássio.
- Tratamento da Crise Aguda: Analgesia, hidratação (frequentemente intravenosa) e, conforme a necessidade clínica, intervenções para remoção do cálculo.
Impacto Sistêmico
A natureza inflamatória crônica da DII, mediada por citocinas pró-inflamatórias, resulta em manifestações sistêmicas significativas que vão além do trato gastrointestinal.
- Sintomas Gerais: Febre, fadiga e mal-estar geral são sintomas sistêmicos comuns, reflexo da atividade inflamatória.
- Crescimento e Desenvolvimento Puberal: Em crianças e adolescentes, a DII exerce um impacto particularmente deletério. A inflamação crônica, a má absorção de nutrientes, a desnutrição, as deficiências vitamínicas e minerais, e frequentemente o uso de corticosteroides, podem culminar em déficit de crescimento, atraso na maturação óssea e retardo no desenvolvimento puberal. Ressalta-se que essas manifestações podem ser os sinais iniciais da DII, mesmo na ausência de sintomas gastrointestinais proeminentes. A abordagem envolve a otimização do tratamento da DII e suporte nutricional adequado.
- Saúde Óssea: A osteopenia e a osteoporose são prevalentes em pacientes com DII, inclusive na população pediátrica. Os fatores de risco incluem a inflamação crônica (que afeta o metabolismo ósseo), má absorção de cálcio e vitamina D, uso prolongado ou frequente de corticosteroides e, potencialmente, redução da atividade física. É importante notar que a perda óssea pode persistir mesmo durante a remissão da doença intestinal. A prevenção e o manejo envolvem o controle da DII, suplementação de cálcio e vitamina D, estímulo à atividade física e, em casos indicados, terapias farmacológicas específicas para a saúde óssea.
Conclusão
As manifestações extraintestinais das DII representam um desafio diagnóstico e terapêutico significativo. O reconhecimento precoce, a classificação adequada e a compreensão dos mecanismos fisiopatológicos subjacentes são essenciais para um manejo clínico otimizado. A abordagem multidisciplinar, que envolve gastroenterologistas, dermatologistas, reumatologistas, oftalmologistas e outros especialistas, é fundamental para garantir o melhor cuidado possível aos pacientes com DII e suas MEI, visando melhorar sua qualidade de vida e minimizar o impacto sistêmico da doença.