Hipotireoidismo Adquirido na Infância: Etiologia (incluindo Tireoidite de Hashimoto) e Manifestações Clínicas

Ilustração da glândula tireóide humana mostrando sinais de inflamação característicos da Tireoidite de Hashimoto.
Ilustração da glândula tireóide humana mostrando sinais de inflamação característicos da Tireoidite de Hashimoto.

O hipotireoidismo adquirido, uma condição caracterizada pela deficiência de hormônios tireoidianos que se desenvolve após o nascimento, representa um desafio significativo na endocrinologia pediátrica. Este artigo explora as diversas causas do hipotireoidismo adquirido na infância e adolescência, com ênfase na Tireoidite de Hashimoto, a etiologia autoimune mais comum. Abordaremos também outras causas, como deficiências e excessos nutricionais, causas iatrogênicas e distúrbios intrínsecos e sistêmicos. Além disso, detalharemos o espectro das manifestações clínicas, desde alterações no crescimento e desenvolvimento até o impacto cognitivo e neurológico, fornecendo uma visão abrangente para o diagnóstico e manejo adequados.

Principais Causas do Hipotireoidismo Adquirido na Infância

O hipotireoidismo adquirido em crianças e adolescentes pode ser desencadeado por diversos fatores etiológicos. A correta identificação da causa subjacente é crucial para o manejo clínico adequado e o acompanhamento a longo prazo do paciente pediátrico.

Tireoidite de Hashimoto: A Principal Causa Autoimune

A Tireoidite de Hashimoto (TH), também conhecida como tireoidite autoimune crônica, é a causa predominante de hipotireoidismo adquirido em crianças e adolescentes, particularmente em regiões com ingestão adequada de iodo. Trata-se de uma condição intrinsecamente autoimune.

Mecanismo Autoimune e Etiopatogenia

A fisiopatologia da Tireoidite de Hashimoto envolve uma resposta anômala do sistema imunológico, que passa a atacar a própria glândula tireóide. Acredita-se que a etiologia resida em uma combinação de predisposição genética e fatores ambientais desencadeantes, que levam à perda da autotolerância. Como resultado, linfócitos T e B autorreativos infiltram o tecido tireoidiano (infiltração linfocítica), orquestrando um processo inflamatório crônico. Esta inflamação culmina na destruição gradual e progressiva das células foliculares tireoidianas, responsáveis pela produção dos hormônios T4 e T3, levando à insuficiência glandular e ao consequente hipotireoidismo.

Marcadores Sorológicos e Diagnóstico

Um achado frequente e característico da TH é a presença de autoanticorpos circulantes direcionados contra componentes tireoidianos, principalmente os anticorpos anti-tireoperoxidase (anti-TPO) e anti-tireoglobulina (anti-Tg). Estes anticorpos não são apenas marcadores da autoimunidade, mas também participam ativamente na patogênese da doença. A detecção sérica de anti-TPO e/ou anti-Tg é altamente sugestiva do diagnóstico de Tireoidite de Hashimoto. No entanto, é fundamental interpretar esses achados no contexto clínico e laboratorial completo, correlacionando-os com os níveis de TSH e T4 livre. A presença isolada dos anticorpos não é suficiente para o diagnóstico definitivo, e, inversamente, sua ausência não exclui a doença em todos os casos.

Aspectos Epidemiológicos e Variações Clínicas

A Tireoidite de Hashimoto demonstra uma notável predileção pelo sexo feminino, com uma razão de prevalência estimada em cerca de 10 mulheres para cada homem. Embora a condição seja mais incidente em adultos, especialmente entre 30 e 50 anos, ela representa a causa mais comum de hipotireoidismo adquirido na infância e adolescência, faixas etárias em que também predomina no sexo feminino. Clinicamente, é relevante notar que uma pequena porcentagem de pacientes pode apresentar, nas fases iniciais da doença, um quadro transitório de tireotoxicose, denominado hashitoxicose. Este fenômeno é atribuído à liberação de hormônios tireoidianos pré-formados na circulação, decorrente da destruição inflamatória aguda do tecido glandular, precedendo a instalação do hipotireoidismo definitivo.

Outras Etiologias do Hipotireoidismo Adquirido na Infância

Embora a Tireoidite de Hashimoto seja a causa predominante de hipotireoidismo adquirido na infância e adolescência, é fundamental reconhecer outras etiologias possíveis que podem levar à disfunção tireoidiana nesta faixa etária. Essas causas alternativas, ainda que menos frequentes em certos contextos, exigem consideração diagnóstica.

Deficiências e Excessos Nutricionais

  • Deficiência de Iodo: Historicamente uma causa significativa, a deficiência de iodo tornou-se rara em regiões com programas eficazes de iodação do sal. No entanto, permanece uma etiologia relevante em áreas endêmicas ou populações com restrições dietéticas específicas.
  • Excesso de Iodo: Paradoxalmente, o excesso de iodo também pode induzir hipotireoidismo, embora seja uma ocorrência menos comum.

Causas Iatrogênicas

Intervenções médicas podem resultar em hipotireoidismo adquirido:

  • Medicamentos: Fármacos como amiodarona, lítio e drogas antitireoidianas podem interferir na função tireoidiana e induzir hipotireoidismo.
  • Radioiodoterapia: O tratamento com iodo radioativo, frequentemente utilizado para Doença de Graves ou câncer de tireoide, pode levar à destruição do tecido tireoidiano e consequente hipotireoidismo.
  • Cirurgia da Tireoide (Tireoidectomia): A remoção parcial ou total da glândula tireoide, realizada por diversas indicações (nódulos, câncer, Doença de Graves), resulta em hipotireoidismo permanente ou transitório.
  • Irradiação Externa: A radioterapia na região do pescoço para tratamento de outras malignidades pode danificar a glândula tireoide.

Distúrbios Intrínsecos e Sistêmicos

  • Defeitos na Síntese Hormonal: Erros inatos do metabolismo envolvendo defeitos enzimáticos na cascata de produção dos hormônios tireoidianos podem manifestar-se como hipotireoidismo adquirido, embora sejam mais raros.
  • Resistência aos Hormônios Tireoidianos: Uma condição ainda mais rara onde os tecidos periféricos não respondem adequadamente aos hormônios tireoidianos circulantes.
  • Hipotireoidismo Central: Disfunção no eixo hipotálamo-hipofisário, seja por tumores, irradiação craniana, trauma ou outras causas, pode levar à produção insuficiente de TSH (hipotireoidismo secundário) ou TRH (hipotireoidismo terciário).
  • Exposição a Substâncias Bociogênicas: Certos alimentos ou compostos químicos podem interferir na função tireoidiana.
  • Doenças Infiltrativas, Infecciosas ou Tumores: Embora raras, condições que infiltram a glândula tireoide (como certas doenças granulomatosas ou metástases) ou processos infecciosos podem comprometer sua função.

Manifestações Clínicas do Hipotireoidismo Adquirido

O hipotireoidismo adquirido na infância e adolescência apresenta um amplo espectro de manifestações clínicas, cuja expressão varia consideravelmente. A apresentação depende fundamentalmente da idade de início da condição, bem como da gravidade e da duração da deficiência de hormônios tireoidianos. Frequentemente, os sintomas desenvolvem-se de forma insidiosa e podem ser não específicos ou sutis, o que pode dificultar o diagnóstico precoce.

Impacto no Crescimento e Desenvolvimento Físico

  • Diminuição da velocidade de crescimento ou desaceleração do crescimento: Sinal chave que pode ser um dos primeiros indicadores da condição.
  • Baixa estatura: Resultante da desaceleração prolongada do crescimento linear.
  • Atraso puberal / Puberdade tardia: Alterações no eixo hipotálamo-hipófise-gonadal podem levar ao retardo do início ou progressão da puberdade.
  • Ganho de peso: Frequentemente observado, muitas vezes desproporcional à ingestão calórica.

Manifestações Sistêmicas e Metabólicas

  • Fadiga, letargia e sonolência excessiva: Redução generalizada dos níveis de energia e aumento da necessidade de sono.
  • Intolerância ao frio: Dificuldade em adaptar-se a ambientes frios devido à diminuição da termogênese.
  • Constipação intestinal: Redução da motilidade do trato gastrointestinal.
  • Pele seca e cabelos finos e quebradiços: Alterações tróficas decorrentes da diminuição do metabolismo basal e da circulação cutânea.
  • Mixedema: Em casos mais graves ou prolongados, pode ocorrer infiltração da pele e tecidos subcutâneos por substâncias mucopolissacarídeas, conferindo um aspecto edemaciado.
  • Voz rouca: Pode ocorrer devido ao edema das cordas vocais.
  • Bócio: A glândula tireoide pode estar aumentada em alguns casos, especialmente na Tireoidite de Hashimoto.

Impacto Cognitivo e Neuropsicomotor

  • Dificuldade de concentração e dificuldades de aprendizado: Comprometimento das funções cognitivas superiores.
  • Declínio no desempenho escolar: Reflexo direto das dificuldades cognitivas e da fadiga.
  • Atraso no desenvolvimento neuropsicomotor: Especialmente relevante em crianças mais jovens, afetando a aquisição de marcos do desenvolvimento.
  • Alterações de humor: Podem ocorrer como parte do quadro clínico.
  • Comprometimento neurológico e cognitivo significativo: Observado em casos mais graves e não tratados adequadamente.

Conclusão

O hipotireoidismo adquirido na infância, com a Tireoidite de Hashimoto como principal causa, apresenta um espectro amplo de etiologias e manifestações clínicas. O diagnóstico precoce, baseado na suspeição clínica e confirmado por exames laboratoriais, é fundamental para minimizar o impacto no crescimento, desenvolvimento e qualidade de vida das crianças e adolescentes afetados. A compreensão das diferentes causas e sinais de alerta permite uma abordagem terapêutica adequada e um acompanhamento a longo prazo eficaz, visando otimizar o prognóstico e garantir um futuro saudável para esses pacientes.

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