A micção, um processo fisiológico fundamental para a eliminação de resíduos líquidos do organismo, é orquestrada por uma complexa interação entre o sistema nervoso e os órgãos do trato urinário inferior. Este artigo explora em detalhes a fisiologia da micção, desde a inervação da bexiga urinária pelos sistemas simpático, parassimpático e somático, passando pelas fases do ciclo miccional (enchimento e esvaziamento), até o reflexo da micção e o controle superior exercido pelo cérebro. Abordaremos também o papel crucial dos receptores adrenérgicos e muscarínicos, da acetilcolina e do relaxamento do assoalho pélvico neste intrincado mecanismo.
Inervação da Bexiga Urinária: Controle Simpático, Parassimpático e Somático
O controle neurológico da bexiga urinária é um processo complexo, fundamental para as funções de armazenamento e esvaziamento. Esse controle é orquestrado pela interação dos sistemas nervoso simpático, parassimpático e somático, cada um com funções específicas na regulação do músculo detrusor e dos esfíncteres uretrais.
Sistema Nervoso Simpático
Originário dos segmentos medulares T10-L2, o sistema nervoso simpático exerce sua influência através dos nervos hipogástricos. Sua principal função no ciclo miccional é facilitar a fase de armazenamento (enchimento vesical). Isso é alcançado por meio de duas ações coordenadas:
- Relaxamento do Músculo Detrusor: A ativação simpática leva ao relaxamento do corpo da bexiga. Este efeito é mediado pela estimulação dos receptores β-adrenérgicos, que são predominantes no músculo detrusor. O relaxamento permite que a bexiga acomode volumes crescentes de urina sem um aumento significativo da pressão intravesical.
- Contração do Esfíncter Interno da Uretra: Simultaneamente, o sistema simpático promove a contração do músculo liso do colo vesical e da uretra proximal, que constituem o esfíncter interno. Essa contração é mediada pela ativação de receptores α-adrenérgicos, encontrados predominantemente nessas regiões. A contração do esfíncter interno aumenta a resistência uretral, essencial para manter a continência durante a fase de enchimento.
Sistema Nervoso Parassimpático
O sistema nervoso parassimpático é o principal responsável pela fase de esvaziamento vesical (micção). Suas fibras emergem dos segmentos sacrais S2-S4 da medula espinhal e seguem pelos nervos pélvicos até a bexiga. A ativação parassimpática desencadeia:
- Contração do Músculo Detrusor: A liberação de acetilcolina (ACh) pelas terminações nervosas parassimpáticas estimula os receptores muscarínicos (principalmente M3) nas células musculares lisas do detrusor. Isso provoca a contração coordenada e sustentada do músculo, aumentando a pressão intravesical e impulsionando a urina para a uretra.
- Relaxamento do Esfíncter Interno: A atividade parassimpática também resulta no relaxamento do esfíncter interno, diminuindo a resistência ao fluxo urinário na saída da bexiga.
Sistema Nervoso Somático
O componente voluntário do controle miccional é mediado pelo sistema nervoso somático através do nervo pudendo. Este nervo inerva o esfíncter externo da uretra, um músculo estriado localizado distalmente ao esfíncter interno. A ativação tônica das fibras motoras somáticas no nervo pudendo mantém o esfíncter externo contraído, permitindo o controle consciente sobre o início e a interrupção da micção. Durante o esvaziamento voluntário, a atividade do nervo pudendo é inibida, levando ao relaxamento do esfíncter externo e facilitando a passagem da urina.
A coordenação precisa entre esses três sistemas de inervação é crucial para a manutenção da continência e para a eficiência do esvaziamento vesical.
As Fases do Ciclo Miccional: Enchimento e Esvaziamento Vesical
O funcionamento adequado do trato urinário inferior depende da alternância coordenada entre duas fases principais do ciclo miccional: a fase de enchimento ou armazenamento vesical e a fase de esvaziamento ou micção. A compreensão detalhada dos mecanismos neurofisiológicos subjacentes a cada fase é essencial para a avaliação e manejo de disfunções miccionais.
Fase de Enchimento Vesical
Durante a fase de enchimento, a bexiga atua como um reservatório de baixa pressão, acumulando urina progressivamente sem aumentos significativos na pressão intravesical. Este processo é assegurado por mecanismos neurais específicos. Predomina a atividade do sistema nervoso simpático, mediada pelos nervos hipogástricos (originados em T10-L2). A ativação simpática promove o relaxamento do músculo detrusor através da estimulação de receptores β-adrenérgicos, que são predominantes no corpo vesical. Concomitantemente, para manter a continência, o sistema simpático induz a contração do esfíncter uretral interno, localizado no colo vesical e uretra proximal, através da ativação de receptores α-adrenérgicos. Adicionalmente, o controle voluntário é mantido pela contração tônica do esfíncter uretral externo, inervado pelo nervo pudendo (sistema nervoso somático).
Fase de Esvaziamento Vesical (Micção)
A fase de esvaziamento é um processo ativo que resulta na expulsão da urina armazenada. Quando o enchimento vesical atinge um determinado limiar, receptores de estiramento na parede da bexiga enviam sinais aferentes para a medula espinhal sacral (S2-S4), desencadeando o reflexo da micção. Este reflexo é complexo e sujeito à modulação por centros superiores, notadamente o centro pontino da micção no tronco encefálico, que coordena a ação sinérgica dos componentes envolvidos. Ocorre a ativação do sistema nervoso parassimpático, via nervos pélvicos (S2-S4), resultando na liberação de acetilcolina (ACh). A ACh atua sobre receptores muscarínicos (principalmente M3) nas células musculares lisas do detrusor, induzindo uma contração coordenada e sustentada do corpo vesical.
Simultaneamente à contração detrusora, é fundamental que ocorra o relaxamento da via de saída. Isto envolve o relaxamento do esfíncter uretral interno, facilitado pela inibição da atividade simpática e pela ação parassimpática, e, crucialmente, o relaxamento do esfíncter uretral externo e da musculatura do assoalho pélvico. Este último é mediado pela inibição da atividade eferente do nervo pudendo. A coordenação precisa entre a contração detrusora e o relaxamento esfincteriano permite a micção eficiente.
O Reflexo da Micção: Integração Medular e Controle Superior
O processo de micção é fundamentalmente regido por um reflexo espinhal complexo, cuja integração ocorre nos segmentos sacrais da medula espinhal, especificamente entre S2 e S4. Este mecanismo autonômico é iniciado pelo estiramento fisiológico da parede vesical decorrente do acúmulo de urina.
O estiramento ativa receptores sensoriais especializados localizados na parede da bexiga. Esses receptores enviam sinais aferentes que ascendem pelas vias nervosas até os segmentos sacrais S2-S4 da medula espinhal. A chegada desses impulsos sensoriais à medula desencadeia a ativação de neurônios parassimpáticos pré-ganglionares situados nos cornos intermédio-laterais desses níveis medulares.
A ativação parassimpática resulta na transmissão de sinais eferentes através dos nervos pélvicos (originados em S2-S4). Esta via eferente induz duas ações coordenadas essenciais para o esvaziamento vesical: a contração do músculo detrusor e o relaxamento do esfíncter uretral interno. A contração do detrusor é mediada principalmente pela liberação de acetilcolina (ACh), que atua sobre receptores muscarínicos (predominantemente do subtipo M3) presentes nas células musculares lisas da bexiga, promovendo o aumento do cálcio intracelular e a consequente contração muscular.
Embora a base do reflexo da micção seja espinhal, ele está sob forte modulação por centros nervosos superiores localizados no tronco encefálico (principalmente na ponte) e no córtex cerebral. Esta modulação supraespinhal é o que confere a capacidade de controle voluntário sobre a micção, permitindo que o reflexo seja conscientemente inibido ou facilitado, dependendo da conveniência social e fisiológica.
Um componente central neste controle superior é o Centro Pontino da Micção (CPM), uma área específica na ponte. O CPM exerce um papel crucial na coordenação precisa e temporalmente ajustada entre a contração do músculo detrusor e o relaxamento dos esfíncteres uretrais (interno e externo). Para que a micção ocorra de forma eficaz, é necessário também o relaxamento do esfíncter uretral externo, que está sob controle somático voluntário via nervo pudendo. Durante a micção coordenada pelo CPM, ocorre uma diminuição na atividade eferente do nervo pudendo, resultando no relaxamento do esfíncter externo e dos músculos do assoalho pélvico, permitindo a passagem livre da urina pela uretra.
Receptores Adrenérgicos e Muscarínicos na Função Vesical
A regulação neurofisiológica da bexiga urinária depende criticamente da interação entre neurotransmissores e receptores específicos localizados no músculo detrusor e no trato de saída vesical. Os receptores adrenérgicos e muscarínicos são mediadores fundamentais das ações dos sistemas nervosos simpático e parassimpático, respectivamente, controlando as fases de enchimento e esvaziamento vesical.
Receptores Adrenérgicos
O sistema nervoso simpático modula predominantemente a fase de armazenamento urinário através da ativação de receptores adrenérgicos:
- Receptores β-adrenérgicos: Estes receptores predominam no corpo da bexiga, especificamente no músculo detrusor. Sua ativação, mediada pela liberação de noradrenalina pelos nervos hipogástricos, promove o relaxamento do músculo liso detrusor. Esta ação é crucial para permitir o enchimento vesical com complacência adequada, ou seja, o armazenamento de volumes crescentes de urina sem aumento significativo da pressão intravesical.
- Receptores α-adrenérgicos: Encontrados principalmente no colo vesical e na uretra proximal, a ativação dos receptores α-adrenérgicos induz a contração do esfíncter uretral interno. Este aumento da resistência uretral é essencial para manter a continência urinária durante a fase de enchimento.
Receptores Muscarínicos
O sistema nervoso parassimpático é o principal responsável pela fase de esvaziamento vesical (micção), atuando através de receptores muscarínicos:
- Localização e Subtipo: Os receptores muscarínicos estão presentes nas células musculares lisas do detrusor. O subtipo predominante envolvido na contração vesical é o receptor M3.
- Mecanismo de Ação: A estimulação parassimpática, via nervos pélvicos, libera acetilcolina (ACh). A ACh liga-se aos receptores muscarínicos M3 no detrusor, desencadeando uma cascata de sinalização intracelular que resulta no aumento dos níveis de cálcio citosólico e, consequentemente, na contração vigorosa e coordenada do músculo detrusor. Esta contração eleva a pressão intravesical e impulsiona a urina para fora da bexiga, culminando na micção.
Em suma, a interação precisa entre a ativação simpática (via receptores α e β adrenérgicos) para o enchimento e a ativação parassimpática (via receptores muscarínicos M3) para o esvaziamento assegura o funcionamento coordenado do ciclo miccional.
Papel da Acetilcolina na Contração do Músculo Detrusor
A inervação parassimpática da bexiga, mediada pelos nervos pélvicos (S2-S4), desempenha um papel crucial na fase de esvaziamento vesical ao induzir a contração do músculo detrusor. O principal neurotransmissor responsável por essa ação contrátil é a acetilcolina (ACh).
Durante a micção, a liberação de ACh pelas terminações nervosas parassimpáticas atua diretamente sobre as células musculares lisas do detrusor. A ACh exerce seu efeito primariamente através da ligação a receptores muscarínicos, com destaque para o subtipo M3 (RM-M3), que são abundantemente expressos nessas células.
A ativação dos receptores M3 pela ACh desencadeia uma cascata de sinalização intracelular. Este processo resulta fundamentalmente no aumento da concentração de íons cálcio (Ca²⁺) no citosol da célula muscular lisa. O influxo de cálcio e/ou sua liberação de estoques intracelulares é o evento chave que acopla a excitação neuromuscular à resposta mecânica.
O consequente aumento do cálcio intracelular livre ativa as vias contráteis dependentes de cálcio, levando à interação entre actina e miosina e, por fim, à contração vigorosa e sustentada do músculo detrusor, necessária para o esvaziamento eficaz da bexiga.
Embora os receptores muscarínicos M3 sejam os mediadores predominantes da contração detrusora induzida pela ACh, constata-se também a presença de receptores nicotínicos nas células musculares lisas da bexiga. Contudo, de acordo com o conhecimento fisiológico atual, esses receptores nicotínicos desempenham um papel considerado menos significativo na modulação direta da contração do músculo detrusor durante a micção fisiológica.
A Importância do Relaxamento do Assoalho Pélvico na Micção
O adequado esvaziamento vesical é um processo fisiológico complexo que requer a coordenação precisa de diversas estruturas, sendo o relaxamento do assoalho pélvico um componente essencial para sua eficácia. Conforme estabelecido pela literatura, a capacidade de relaxar essa musculatura é fundamental para permitir a micção sem obstruções.
Durante a fase de esvaziamento do ciclo miccional, ocorre uma modulação específica da inervação somática. A atividade neural eferente conduzida pelo nervo pudendo diminui significativamente. Essa redução na sinalização do nervo pudendo é o gatilho para o relaxamento do esfíncter uretral externo, que está sob controle voluntário, bem como dos demais músculos que constituem o assoalho pélvico.
A consequência direta desse relaxamento coordenado é a redução da resistência ao fluxo urinário. Isso facilita a abertura funcional do colo vesical e permite a passagem livre da urina da bexiga, através da uretra, até a sua completa expulsão.
Conclusão
Em resumo, a fisiologia da micção é um processo intrincado que envolve a coordenação precisa dos sistemas nervoso simpático, parassimpático e somático, bem como a interação de diversos receptores e neurotransmissores. O ciclo miccional é dividido em duas fases principais: enchimento e esvaziamento, cada uma controlada por mecanismos neurofisiológicos específicos. O reflexo da micção, integrado na medula espinhal e modulado por centros superiores, permite o controle voluntário sobre a micção. A compreensão detalhada desses mecanismos é fundamental para o diagnóstico e tratamento de disfunções miccionais, como incontinência urinária e retenção urinária. Além disso, o relaxamento adequado do assoalho pélvico desempenha um papel crucial na facilitação do esvaziamento vesical completo e eficiente.