As crises febris (CF) são eventos comuns na infância, caracterizadas por convulsões associadas à febre em crianças geralmente entre 6 meses e 5 anos de idade. Este artigo explora em detalhes a etiologia multifatorial das crises febris, que envolve uma complexa interação entre predisposição genética e fatores ambientais, incluindo a elevação da temperatura corporal e agentes infecciosos. Abordaremos a fisiopatologia, focando no papel da febre e da imaturidade do sistema nervoso central, os fatores de risco primários e de recorrência, além de discutir as crises febris complexas/atípicas, o risco de epilepsia associado e a importância da investigação diagnóstica.
Etiologia das Crises Febris: Fatores Genéticos, Infecciosos e Outros Gatilhos
A etiologia das crises febris (CF) é reconhecida como multifatorial, embora os mecanismos exatos ainda não sejam completamente elucidados. A compreensão atual aponta para uma interação complexa entre uma predisposição genética inerente ao indivíduo e fatores ambientais, nomeadamente a elevação da temperatura corporal e agentes infecciosos.
Predisposição Genética
Fatores genéticos desempenham um papel substancial na suscetibilidade às crises febris. A história familiar de crises febris ou epilepsia constitui um fator de risco significativo, com parentes de primeiro grau de indivíduos afetados apresentando um risco aumentado. Embora diversos genes tenham sido implicados, sugerindo uma base poligênica, nenhum gene isolado foi identificado como causa única. Acredita-se que a suscetibilidade genética possa estar relacionada a variações em canais iônicos e receptores neuronais, que modulam a excitabilidade neuronal.
O Papel Central da Febre
A febre é o fator desencadeante fundamental nas crises febris. Mais especificamente, a rápida elevação da temperatura corporal parece ser um elemento crucial, mais do que a magnitude absoluta da febre em si. O aumento da temperatura atua diminuindo o limiar convulsivo em indivíduos geneticamente predispostos. Este fenômeno pode envolver alterações nas propriedades e na excitabilidade neuronal, facilitadas pela febre, especialmente no contexto de um sistema nervoso central ainda em desenvolvimento e, portanto, mais suscetível (imaturidade do SNC).
Gatilhos Infecciosos
A febre que desencadeia as crises febris está frequentemente associada a infecções. A identificação do agente etiológico subjacente é relevante para o manejo clínico.
- Infecções Virais: São as causas mais comuns de febre associada a CF. Incluem:
- Infecções do trato respiratório superior (ITRS), como resfriados comuns.
- Herpes vírus humano tipo 6 (HHV-6), frequentemente associado à roséola infantum.
- Vírus Influenza (gripe).
- Vírus Sincicial Respiratório (VSR).
- Outras infecções virais comuns na infância.
- Infecções Bacterianas: Embora menos frequentes que as virais como gatilho direto da febre associada à CF, também podem estar envolvidas. Exemplos incluem:
- Otite Média Aguda (OMA).
- Infecções do Trato Urinário (ITU).
- Gastroenterites bacterianas.
Outros Gatilhos Potenciais
Em casos mais raros, a febre subsequente à vacinação pode atuar como gatilho para crises febris. As vacinas mais frequentemente citadas neste contexto são a DTP (difteria, tétano, pertussis) e a tríplice viral (sarampo, caxumba, rubéola – SCR). É importante notar que as crises febris pós-vacinais são geralmente consideradas benignas.
Fisiopatologia: O Papel da Febre e da Imaturidade Cerebral
A fisiopatologia exata das crises febris ainda não está totalmente elucidada, mas compreende-se que resulta de uma interação complexa entre múltiplos fatores. Os elementos centrais envolvidos incluem a elevação da temperatura corporal, uma predisposição genética individual e a imaturidade característica do sistema nervoso central (SNC) em desenvolvimento.
Impacto da Elevação Térmica na Excitabilidade Neuronal
A febre, particularmente a sua rápida elevação, desempenha um papel crucial como fator desencadeante. Acredita-se que o aumento da temperatura corporal atue diminuindo o limiar convulsivo em indivíduos suscetíveis. Esse fenômeno ocorre através da alteração das propriedades e da excitabilidade neuronal, facilitando um estado de hiperexcitabilidade que pode culminar na crise convulsiva.
A Relevância da Imaturidade do Sistema Nervoso Central
A ocorrência de crises febris é frequentemente interpretada como uma resposta fisiológica específica e relacionada à idade do cérebro imaturo frente ao estímulo febril. O SNC em desenvolvimento possui características intrínsecas que contribuem para essa suscetibilidade, notadamente um limiar convulsivo naturalmente mais baixo. Isso se deve, em parte, a um equilíbrio neuroquímico distinto, com menor atividade inibitória e maior excitabilidade, especialmente nos circuitos subcorticais. Adicionalmente, existe uma suscetibilidade neuronal aumentada em certas faixas etárias pediátricas, tornando o cérebro mais propenso a responder com uma crise diante da febre.
Portanto, a fisiopatologia das crises febris envolve a interação dinâmica entre a capacidade da febre de modular a função neuronal e as características inerentes a um cérebro ainda em maturação, sobrepostas a uma possível predisposição genética, que pode envolver variações em canais iônicos e receptores neuronais.
Fatores de Risco Primários para Crises Febris
A ocorrência da primeira crise febril em uma criança é influenciada por uma combinação de fatores intrínsecos e extrínsecos que aumentam a suscetibilidade individual. A identificação desses fatores é crucial para a avaliação clínica e o aconselhamento familiar. Com base nos conhecimentos atuais, os principais fatores de risco primários incluem:
- Faixa Etária: A incidência de crises febris é predominantemente observada entre os 6 meses e 5 anos de idade. No entanto, o risco é notavelmente aumentado em crianças com idade inferior a 18 meses no momento da primeira exposição febril significativa. Crises em lactentes com menos de 6 meses devem levar à investigação de outras causas.
- História Familiar e Predisposição Genética: A presença de história familiar de crises febris ou epilepsia, particularmente em parentes de primeiro grau, constitui um fator de risco significativo. Isso reflete a importante contribuição de fatores genéticos na predisposição individual, embora a herança seja complexa e multifatorial.
- Características da Febre: Tanto a magnitude quanto a velocidade de instalação da febre são relevantes. Uma alta magnitude febril e, especialmente, uma rápida elevação da temperatura corporal são consideradas fatores desencadeantes importantes, diminuindo o limiar convulsivo no cérebro em desenvolvimento.
- Infecções Associadas: Infecções virais são as causas mais comuns de febre que precedem uma crise febril. Agentes específicos, como o Herpes Vírus Humano tipo 6 (HHV-6), agente etiológico da Roséola Infantum (Exantema Súbito), estão particularmente associados a um risco aumentado. Infecções do trato respiratório superior, otite média e, menos frequentemente, infecções bacterianas também podem ser gatilhos.
- Histórico Perinatal e Desenvolvimento: Um histórico de internação neonatal prolongada, especificamente por período superior a 30 dias, é citado como um fator de risco. Adicionalmente, a presença de atraso no desenvolvimento neuropsicomotor prévio também aumenta a suscetibilidade à ocorrência de crises febris.
- Frequência de Episódios Febris: Uma maior frequência de episódios febris, por qualquer motivo (por exemplo, frequência a creches com maior exposição a infecções), pode aumentar a oportunidade para a ocorrência de uma crise febril em crianças suscetíveis.
- Febre Pós-Vacinação: Embora considerado um evento raro, a febre secundária a certas imunizações, como a vacina tríplice bacteriana (DTP) ou a tríplice viral (sarampo-caxumba-rubéola), pode ocasionalmente desencadear uma crise febril. Essas crises são geralmente benignas.
Fatores de Risco para Recorrência de Crises Febris
A recorrência de crises febris (também denominadas convulsões febris ou crises convulsivas febris – CCF) é uma preocupação clínica significativa, ocorrendo em aproximadamente 30-35% das crianças que apresentam um primeiro episódio. Diversos fatores podem aumentar o risco de recorrência.
- Idade inferior a 18 meses na primeira crise: Crianças mais novas têm maior probabilidade de recorrência.
- Temperatura mais baixa no início da crise: Crises que ocorrem com temperaturas mais baixas podem indicar maior suscetibilidade a convulsões.
- História familiar de crises febris: A predisposição genética pode aumentar o risco.
- Duração da primeira crise inferior a 15 minutos: Paradoxalmente, crises mais curtas podem estar associadas a maior risco de recorrência.
- Recorrência na família: Ter um familiar de primeiro grau (pais ou irmãos) que também teve recorrência de crises febris aumenta o risco.
É importante lembrar que esses são apenas fatores de risco. A presença de um ou mais desses fatores não garante que a criança terá outra crise febril, e a ausência deles não garante que não terá. O médico poderá avaliar o risco individual da criança e orientar os pais sobre o que fazer em caso de nova crise.
Crises Febris Complexas/Atípicas, Risco de Epilepsia e Investigação Necessária
Embora a maioria das crises febris (CF) sejam classificadas como simples, uma minoria apresenta características complexas ou atípicas. Essas formas demandam atenção particular devido à sua associação com um risco ligeiramente aumentado de recorrência e, potencialmente, de desenvolvimento futuro de epilepsia, embora o risco absoluto para epilepsia permaneça relativamente baixo para a maioria das crianças.
Fatores Associados a Crises Febris Complexas/Atípicas
Diversos fatores foram identificados como associados a um maior risco de ocorrência de crises febris complexas ou atípicas. A presença desses fatores pode sinalizar a necessidade de uma avaliação mais aprofundada e um acompanhamento diferenciado:
- Crises Febris Complexas Prévias: A ocorrência anterior de uma CF complexa é um fator de risco tanto para recorrência quanto para futuras crises complexas.
- História Familiar de Epilepsia: Um histórico de epilepsia em familiares, particularmente em parentes de primeiro grau, aumenta a probabilidade de a criança apresentar CF complexas e também eleva discretamente o risco subsequente de epilepsia.
- Anormalidades Neurológicas Preexistentes: Crianças com condições neurológicas de base, como paralisia cerebral ou atraso no desenvolvimento neuropsicomotor, têm maior predisposição a apresentar CF complexas. O atraso no desenvolvimento neuropsicomotor é consistentemente citado como fator de risco.
- Idade de Início Atípica: O início das crises febris fora da faixa etária mais comum (tipicamente 6 meses a 5 anos), ou seja, antes dos 6 meses ou após os 5 anos de idade, é considerado um fator de risco para CF atípica. Uma idade inferior a 12 ou 18 meses na primeira crise também é frequentemente citada como fator de risco para complexidade e recorrência.
- Características da Crise e Febre: Uma temperatura relativamente baixa (ex: 38-39°C) no momento da crise e um curto intervalo entre o início da febre e a convulsão também são fatores associados a um maior risco de CF complexa e recorrência.
Implicações para o Risco de Epilepsia
A presença de crises febris complexas ou a identificação dos fatores de risco mencionados anteriormente (história familiar de epilepsia, anormalidades neurológicas preexistentes, início em idade atípica) está associada a um risco aumentado de desenvolvimento de epilepsia no futuro. No entanto, é fundamental reforçar que, mesmo nesses subgrupos, o risco absoluto de epilepsia permanece baixo, e a grande maioria das crianças com crises febris, incluindo as complexas, não desenvolverá epilepsia.
Investigação Diagnóstica Essencial
Diante de uma crise febril, especialmente se complexa ou no primeiro episódio, a investigação da causa subjacente da febre é mandátória. É crucial descartar condições graves que podem mimetizar ou ser a causa da crise febril, com destaque para a meningite bacteriana.
A investigação deve incluir:
- Avaliação Clínica Detalhada: Exame físico completo em busca de sinais de infecções respiratórias, gastrointestinais, urinárias ou outras fontes infecciosas.
- Consideração de Meningite Bacteriana: Especialmente em lactentes jovens (idade inferior a 12 meses), a exclusão de meningite bacteriana é prioritária. Fatores que aumentam a suspeita incluem sinais de irritação meníngea, estado pós-ictal prolongado, história de antibioticoterapia prévia (que pode mascarar sintomas) e vacinação incompleta. Crianças menores de 6 meses com quadros febris sempre requerem investigação cuidadosa para causas infecciosas graves.
- Indicação de Punção Lombar (PL): A PL deve ser fortemente considerada em pacientes com sinais clínicos sugestivos de irritação meníngea, alteração persistente do nível de consciência após a crise, ou quando a etiologia da febre não é claramente identificada após avaliação inicial, sobretudo em lactentes mais jovens ou com esquema vacinal incompleto para patógenos como Haemophilus influenzae tipo b e Streptococcus pneumoniae.
A abordagem diagnóstica visa identificar a causa da febre para tratamento específico e, simultaneamente, avaliar fatores que possam indicar um risco aumentado de complicações ou de desenvolvimento futuro de epilepsia, permitindo um aconselhamento e seguimento adequados.
Conclusão
Em resumo, as crises febris são eventos complexos influenciados por uma variedade de fatores genéticos, infecciosos e relacionados ao desenvolvimento. A rápida elevação da temperatura em um sistema nervoso central ainda imaturo desempenha um papel crucial na fisiopatologia. Embora a maioria das crises febris seja benigna, a identificação de fatores de risco para recorrência e a distinção entre crises simples e complexas são essenciais para a avaliação clínica e o manejo adequado. A investigação diagnóstica cuidadosa é fundamental para descartar causas subjacentes graves e para fornecer informações precisas aos cuidadores, garantindo o melhor acompanhamento e minimizando a ansiedade.