A crise epiléptica é a ocorrência neurológica clínica mais frequente da emergência pediátrica. De 4 a 10% da população apresentará ao menos 1 episódio epiléptico até os 16 anos de idade, incluindo-se as crises febris, que ocorrem em 2 a 5% das crianças de até 5 anos de idade. Atendimentos relacionados a crises epilépticas correspondem a 1 a 5% dos atendimentos em serviço de urgência e emergência, e cerca de 15% dos atendimentos pré-hospitalares de crianças de até 5 anos de idade em nosso meio. O pediatra deve estar preparado para rapidamente reconhecer e estabilizar o paciente em crise epiléptica e providenciar tratamento adequado. Deve, ainda, estar capacitado a reconhecer e tratar o estado de mal epiléptico (EME), quadro com importante morbidade e mortalidade associadas. Define-se crise epiléptica como a manifestação clínica resultante de descargas neuronais excessivas, paroxísticas e síncronas de um grupo de neurônios corticais. O termo convulsão (ou crise convulsiva) relaciona-se a manifestações motoras da crise epiléptica, caracterizadas por contrações musculares anormais e excessivas. Denomina-se crise focal aquela restrita a um hemisfério cerebral, podendo evoluir para generalizada em até 30% dos casos e ocorrer com ou sem perda da consciência. Crises generalizadas são aquelas que envolvem ambos os hemisférios cerebrais, com manifestações acometendo, portanto, ambos os lados do corpo e cursando com perda de consciência. O pediatra, trabalhando em serviço de urgência e emergência, deve estar familiarizado com a abordagem do EME. Pode- -se definir EME como uma crise epiléptica prolongada, capaz de tornar-se uma condição duradoura e invariável e suplantar os mecanismos orgânicos de manutenção da homeostase. De forma prática, a definição de EME passa a relacionar-se ao tempo de duração da crise. Classicamente definido por uma crise (ou crises reentrantes sem recuperação da consciência) durando acima de 30 minutos, recomendações recentes passam a classificar como EME crises com duração superior a 5 minutos, já que elas podem perpetuar-se com frequência, além de que complicações sistêmicas podem ser observadas associadas a crises com duração inferior a 30 minutos. Contudo, ainda há controvérsia na literatura. O EME não convulsivo (reconhecido por meio de eletroencefalografia e que deve ser considerado parte do diagnóstico diferencial do rebaixamento de consciência e estado confusional agudo) e o EME refratário (definido como EME não responsivo aos tratamentos convencionais) trazem maior risco de mortalidade (20 a 60%).
Patogênese
Durante a crise epiléptica ocorre aumento do consumo de O2 e glicose e da produção de lactato e CO2 . Enquanto há manutenção da ventilação adequada, o aumento do fluxo sanguíneo cerebral é, em geral, suficiente para a compensação. Dessa forma, crises curtas não resultam em dano cerebral ou complicações sistêmicas na maior parte dos casos. Ainda na fase inicial da crise, a descarga simpática resulta em taquicardia, hipertensão e hiperglicemia. O paciente em crise epiléptica pode ter dificuldade para sustentar a via aérea. Quando a ventilação se torna inadequada e/ou os mecanismos compensatórios tornam-se insuficientes, ocorre evolução para hipoxemia, hipercarbia e acidose respiratória. Quanto mais prolongada a crise, maior o risco de acidose lática, rabdomiólise, hiperpotassemia, hipertermia e hipoglicemia. O EME estabelece-se quando há falhas nos mecanismos normais que limitam as crises (ou seja, quando a excitação é excessiva ou a inibição é inefetiva). Quanto mais prolongado, maior a dificuldade de reversão e maior a chance de prejuízo neuronal. Além da lesão neuronal, as complicações sistêmicas do EME são:
- hipoxemia;
- acidemia;
- hiperglicemia (fase inicial) ou hipoglicemia (EME prolongado);
- hipertensão (fase inicial) ou hipotensão (EME prolongado);
- hipertermia;
- hiperpotassemia;
- mioglobinúria;
- insuficiência renal aguda.
As principais causas de crises epilépticas em crianças incluem crises febris (que serão abordadas adiante), epilepsia, infecções do sistema nervoso central (SNC), asfixia perinatal e encefalopatia hipóxico-isquêmica não progressiva, hipoglicemia, distúrbios eletrolíticos (principalmente hipocalcemia, hipomagnesemia e hipernatremia), deficiência de piridoxina, erros inatos do metabolismo, traumatismo cranioencefálico (TCE), hemorragia intracraniana, acidente vascular cerebral, intoxicações exógenas ou abstinência a álcool ou drogas antiepilépticas, tumores do SNC e hiperviscosidade sanguínea. Denomina-se crise sintomática aguda aquela que decorre de agressão aguda ao SNC, havendo, portanto, necessidade de manejo emergencial da causa.
Manifestações clínicas
Muitas vezes, o paciente chega ao serviço médico já fora de crise. Nessa situação, o pediatra deve ser capaz de caracterizar o evento e identificar crises epilépticas, diferenciando-as de eventos que podem ser confundidos com elas, incluindo:
- eventos que cursam com alteração aguda da consciência (síncope, arritmia cardíaca, perda de fôlego);
- distúrbios paroxísticos do movimento (tiques, tremores, espasmos, distonias);
- distúrbios do sono (terror noturno, sonambulismo, narcolepsia);
- distúrbios psiquiátricos (ataques de pânico, crises simuladas, hiperventilação);
- doença do refluxo gastroesofágico (síndrome de Sandifer).
Os dados que sugerem crise epiléptica são presença de aura, movimentos tônicos, clônicos ou tônico-clônicos, movimentos anômalos dos olhos, perda da consciência e perda do controle esfinctérico. Pode ocorrer cianose central. Na maior parte das vezes, a crise é seguida de período pós-ictal com confusão mental, irritabilidade e fadiga. Para diferenciar de situações que simulam crises epilépticas, observa-se que crises epilépticas não param com restrição passiva e não se alteram quando se chama a atenção ou se movimenta a criança. O paciente que simula crise mantém seus reflexos de autoproteção e localiza estímulo doloroso. Movimentos bilaterais sem perda de consciência raramente correspondem à crise epiléptica. É fundamental que se identifiquem as crises sintomáticas agudas para que se possa tratar a causa rapidamente. Por esse motivo, deve-se questionar sobre a ocorrência de fatores precipitantes, como:
- doença sistêmica atual, febre ou infecção;
- sintomas neurológicos, convulsões prévias;
- trauma;
- ingestão de medicamentos ou tóxicos;
- vacinação recente;
- doenças crônicas.
Ao exame físico, devem-se observar os sinais vitais, procurar sinais de infecção e de irritação meníngea, sinais de hipertensão intracraniana (abaulamento de fontanela, bradicardia, hipertensão, alterações do ritmo respiratório e edema de papilas à fundoscopia), sinais externos de trauma e sinais de doenças sistêmicas crônicas. Imediatamente após a crise, o exame neurológico mostra sonolência, ataxia, confusão mental e irritabilidade. A presença de déficits neurológicos focais e alteração prolongada da consciência são sinais de risco que devem ser pesquisados. Em alguns casos, após uma crise focal, pode haver déficit neurológico focal, acometendo o mesmo lado do corpo que a crise que o antecedeu, que se resolve em até 24 horas após o final da crise. Esta é a chamada paralisia de Todd e não se associa a lesões neurológicas permanentes.
Convulsão febril
É um evento benigno que ocorre em crianças com mais de 1 mês de vida, associado a doença febril não causada por infecção do SNC, em pacientes sem antecedentes de crises neonatais ou crises afebris e sem critérios para crises sintomáticas agudas. Acometem cerca de 5% das crianças de até 5 anos de idade. Podem ser simples (mais de 80% dos casos, caracterizadas por duração menor que 15 minutos, sem recorrência na mesma doença febril, generalizadas e sem déficits focais) ou complexas (focais, com duração maior que 15 minutos, recorrentes na mesma doença febril ou seguidas da paresia de Todd). O principal fator predisponente é a herança familiar. O diagnóstico depende de história e exame clínico e neurológico, caracterizando crise epiléptica e afastando infecção do SNC e outas crises sintomáticas agudas. Quando caracterizada a crise febril simples, não há necessidade de coleta de exames complementares. A punção lombar com coleta do LCR só é necessária para afastar infecção de SNC quando há sinais clínicos sugestivos de meningite, quando a criança tem menos de 6 meses de vida ou quando o lactente não está imunizado contra pneumococo, meningococo e hemófilo. Na grande maioria das vezes, a crise resolve-se rápida e espontaneamente. Quando necessário, o tratamento é o mesmo das demais crises epilépticas na criança. O prognóstico é bom, com chance de recorrência de 30% e chance de epilepsia de 2 a 4% (maior que a da população geral). A alta hospitalar é segura após orientação dos pais na maior parte dos casos. Indica- -se internação hospitalar para observação e avaliação neurológica nos casos de crises complexas ou prolongadas
Crises neonatais
O cérebro neonatal imaturo é mais excitável e pode não sustentar atividade epileptiforme organizada. Dessa forma, as crises do período neonatal podem ser súbitas e difíceis de reconhecer, com manifestações que incluem movimentos anômalos dos olhos, lábios ou língua, movimento de pedalar ou apneia. Ocorrem em 1,8 a 3,5 para 1.000 recém-nascidos e são, em sua grande maioria, crises sintomáticas agudas. As causas mais comuns são eventos hipóxico-isquêmicos (60%) e infecção (5 a 10%). O recém-nascido que apresenta crise epiléptica deve ser admitido para internação hospitalar e receber estabilização inicial da via aérea, respiração e circulação. A glicemia de jejum deve ser realizada imediatamente e deve-se corrigir hipoglicemia com valores abaixo de 40 mg/dL. São necessários realização de ultrassonografia transfontanela ou TC de crânio, coleta de eletrólitos, gasometria arterial, hemograma e hemocultura, cálcio e magnésio séricos, análise de urina tipo I e urocultura e triagem toxicológica. O LCR deve ser coletado e avaliado para as possibilidades de meningite ou encefalite, principalmente pelo vírus herpes. Se não houver causa identificada, fica indicada a pesquisa de erros inatos do metabolismo. Pelo maior risco de depressão respiratória associado ao uso de benzodiazepínicos, a primeira escolha terapêutica é o fenobarbital. O recém-nascido deve receber antibioticoterapia de amplo espectro e pode-se considerar o uso de aciclovir, até que se tenha afastado a hipótese de infecção do SNC.
Estudante de Medicina e Autora do Blog Resumos Medicina
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