TCE pediátrico
traumatismo cranioencefálico infantil
PECARN TCE
conduta TCE pediátrico
Guia Completo

TCE Pediátrico: Guia Completo de Avaliação, Diagnóstico (PECARN) e Conduta Clínica

Por ResumeAi Concursos
Tomografia cerebral pediátrica: sinais de TCE como edema ou contusões focais para diagnóstico.

O traumatismo cranioencefálico (TCE) em crianças e adolescentes representa um desafio diagnóstico e terapêutico significativo na prática médica, sendo uma das principais causas de morbimortalidade e incapacidade nessa faixa etária. Este guia abrangente foi meticulosamente elaborado para equipar profissionais de saúde com o conhecimento atualizado e baseado em evidências necessário para uma avaliação precisa, diagnóstico assertivo – incluindo a aplicação dos critérios PECARN – e um manejo clínico eficaz do TCE pediátrico. Nosso objetivo é capacitar você a tomar decisões informadas que podem definir o prognóstico e a qualidade de vida de seus jovens pacientes.

O Universo do TCE Pediátrico: Entendendo Causas, Riscos e Impacto

O Traumatismo Cranioencefálico (TCE) em Pediatria refere-se a qualquer lesão no cérebro, crânio ou couro cabeludo de uma criança, resultante de uma força externa. Este é um tema de extrema relevância na prática médica, pois o TCE figura como uma causa significativa de morbidade e mortalidade infantil, respondendo por uma alarmante parcela de 75% a 97% das mortes por trauma nesta população. Infelizmente, o TCE não apenas ceifa vidas, mas também é a principal causa de invalidez em crianças, deixando sequelas que podem impactar profundamente o desenvolvimento e a qualidade de vida dos pequenos pacientes e suas famílias.

A epidemiologia do TCE pediátrico revela um cenário complexo. As causas são variadas e incluem desde quedas (uma das mais comuns, especialmente em lactentes e pré-escolares), acidentes de trânsito (como atropelamentos ou colisões envolvendo veículos), agressões, lesões esportivas e acidentes domésticos diversos. É importante notar que, em lactentes, os traumatismos cranianos são mais frequentes do que fraturas de extremidades, sublinhando a vulnerabilidade da cabeça nessa faixa etária.

Dentro do espectro de causas, duas situações merecem destaque pela sua gravidade e, por vezes, pela dificuldade diagnóstica:

  • Maus-tratos: O TCE é a principal causa de morte em crianças vítimas de maus-tratos. Lesões como hematomas subdurais podem ser indicativas, e a suspeita deve ser sempre levantada quando a história do trauma (por exemplo, uma queda) é incompatível com o quadro clínico apresentado pela criança. Certas lesões, como fraturas de costelas em crianças pequenas, têm baixa probabilidade de ocorrerem por trauma não intencional, acendendo um alerta para possível violência.
  • Tocotraumatismo: Refere-se a lesões ou traumas sofridos pelo feto ou recém-nascido durante o processo de parto. Embora o tocotraumatismo possa resultar em fraturas cranianas, é fundamental diferenciá-lo de outras condições, pois ele, isoladamente, não explicaria achados como petéquias ou hepatoesplenomegalia.

A alta incidência e gravidade do TCE em crianças não são fortuitas; elas estão intrinsecamente ligadas a particularidades anatômicas e fisiológicas da população infantil:

  • Crânio proporcionalmente maior e mais pesado: Em relação ao restante do corpo, a cabeça da criança representa uma proporção maior, tornando-a o ponto de impacto mais provável em muitos tipos de trauma.
  • Menor tonicidade da musculatura cervical: A musculatura do pescoço ainda está em desenvolvimento, oferecendo menor suporte e proteção à cabeça e à coluna cervical durante movimentos bruscos.
  • Ossos cranianos mais flexíveis e frágeis: Os ossos do crânio infantil são mais finos e maleáveis, com suturas ainda não completamente fundidas, o que pode levar a tipos específicos de fraturas e maior transmissão de energia ao cérebro.
  • Desproporção crânio-facial e proeminência occipital: Especialmente em lactentes, a parte posterior da cabeça (occipital) é mais proeminente. Isso, associado à maior cabeça, pode levar a uma flexão passiva da coluna cervical quando a criança está deitada de costas, com anteriorização da laringe, aumentando o risco de lesão cervical associada ao TCE.

No contexto mais amplo do politrauma pediátrico, embora traumas múltiplos sejam proporcionalmente menos frequentes em crianças do que em adultos (devido à menor exposição a riscos e maior proteção por dispositivos de segurança), suas características são distintas. Crianças politraumatizadas tendem a apresentar mais lesões de órgãos internos em comparação com fraturas ósseas, diferentemente do padrão adulto.

Diante de um quadro de TCE, o objetivo primordial do atendimento médico transcende o tratamento da lesão inicial. Visa-se, crucialmente, a estabilização do paciente e a prevenção de lesões cerebrais secundárias – danos que ocorrem após o impacto inicial, como inchaço cerebral, isquemia ou hemorragias, e que podem agravar significativamente o prognóstico. Compreender a magnitude, as causas e os fatores de risco associados ao TCE pediátrico é o primeiro passo para um manejo clínico eficaz e para a implementação de estratégias preventivas que possam proteger nossas crianças.

Primeiros Passos Cruciais: Avaliação Clínica e Estratificação de Risco no TCE Pediátrico

Diante de uma criança com suspeita de Traumatismo Cranioencefálico (TCE), cada segundo conta. A avaliação clínica inicial e a correta estratificação de risco são passos fundamentais que definem o prognóstico e a conduta terapêutica.

A primeira etapa dessa avaliação crucial envolve uma análise sistemática e detalhada, seguindo os princípios do atendimento ao politraumatizado, se aplicável. É essencial obter informações sobre:

  • A idade da criança.
  • O mecanismo do trauma (queda, acidente automobilístico, agressão, etc.).
  • O tempo decorrido desde o evento.
  • As condições hemodinâmicas e respiratórias atuais.
  • Relatos de perda de consciência, amnésia (anterógrada ou retrógrada), cefaleia (sua intensidade e progressão), e a ocorrência de convulsões pós-trauma.

O pilar da avaliação neurológica inicial é a Escala de Coma de Glasgow (ECG), devidamente adaptada para a faixa etária pediátrica. A ECG avalia a abertura ocular, a resposta verbal e a resposta motora, fornecendo um escore que varia de 3 (coma profundo) a 15 (normal). Com base nesse escore, o TCE é classificado quanto à sua gravidade:

  • TCE Leve: ECG 13-15 (algumas literaturas consideram 14-15 para critérios específicos como o PECARN).
  • TCE Moderado: ECG 9-12.
  • TCE Grave: ECG 3-8. Pacientes com TCE grave (ECG ≤ 8) frequentemente necessitam de intubação orotraqueal imediata para proteção de vias aéreas.

A identificação de sinais de gravidade é imperativa, mesmo em casos inicialmente classificados como TCE leve. Esses sinais variam um pouco conforme a idade da criança:

  • Sinais gerais de alerta:

    • Alteração do nível de consciência (ECG < 15, duas horas após o trauma).
    • Suspeita de fratura craniana exposta ou com afundamento.
    • Sinais de fratura de base do crânio: hemotímpano (sangue atrás do tímpano), equimose periorbital bilateral ("sinal do guaxinim"), equimose retroauricular ("sinal de Battle"), ou saída de líquor (líquido cefalorraquidiano) pelo nariz (rinoliquorreia) ou ouvido (otoliquorreia).
    • Dois ou mais episódios de vômitos, especialmente se em jato.
    • Déficits neurológicos focais (fraqueza em um lado do corpo, alterações na fala).
    • Crise convulsiva pós-traumática.
  • Sinais de gravidade em crianças menores de 2 anos:

    • Irritabilidade acentuada ou choro inconsolável.
    • Sonolência excessiva ou letargia.
    • Fontanela ("moleira") abaulada e tensa.
    • Hematoma extenso no couro cabeludo, especialmente se não for na região frontal.
    • Comportamento não habitual persistente.
  • Sinais de gravidade em crianças maiores de 2 anos:

    • Cefaleia intensa, persistente ou progressiva.
    • Vômitos persistentes ou incoercíveis.
    • Confusão mental, desorientação ou alteração comportamental significativa.
    • Dificuldade para andar ou manter o equilíbrio.
    • Piora progressiva do nível de consciência.

Com base nesses achados, a criança é estratificada quanto ao risco de apresentar uma lesão intracraniana clinicamente importante. Ferramentas como os critérios do PECARN (Pediatric Emergency Care Applied Research Network), detalhados adiante, auxiliam nessa estratificação, dividindo os pacientes em categorias de baixo, moderado ou alto risco. Essa classificação é crucial para orientar a decisão sobre a necessidade de exames de imagem, como a Tomografia Computadorizada (TC) de crânio. Geralmente:

  • Alto risco: TC de crânio é indicada.
  • Moderado risco: Considerar TC de crânio ou um período de observação clínica (geralmente 4-6 horas).
  • Baixo risco: Observação domiciliar com orientações claras aos pais/responsáveis sobre sinais de alerta pode ser suficiente.

Após a avaliação e estabilização iniciais (ABCDE do trauma), procede-se à avaliação secundária. Esta é uma inspeção mais detalhada da cabeça aos pés, buscando lesões associadas, especialmente em casos de politrauma. É fundamental considerar:

  • Lesões Cervicais: Embora raras em crianças (cerca de 1-2% das lesões de coluna), a maior proporção da cabeça em relação ao corpo aumenta o risco. A imobilização cervical deve ser mantida até que uma lesão seja descartada, especialmente em TCE moderado a grave ou com alteração do nível de consciência. A TC de coluna cervical pode ser necessária.
  • Trauma Torácico: Em crianças, a caixa torácica é mais elástica. Isso significa que podem ocorrer lesões intratorácicas significativas (como contusão pulmonar) mesmo na ausência de fraturas de costelas.
  • Trauma Abdominal: O baço é o órgão mais frequentemente lesionado em traumas abdominais contusos em crianças. Sinais como dor abdominal ou no ombro esquerdo (sinal de Kehr) e instabilidade hemodinâmica devem levantar suspeita.
  • Estado de Choque: É importante lembrar que um trauma craniano isolado raramente causa choque em crianças (exceto em lactentes com grandes perdas sanguíneas por lesões no couro cabeludo ou fraturas com hemorragia epidural significativa). Se houver sinais de choque, outras fontes de sangramento (torácico, abdominal, pélvico, membros) devem ser exaustivamente procuradas.

Esta avaliação inicial abrangente e a estratificação de risco são a base para um manejo adequado, visando minimizar lesões secundárias e otimizar o desfecho para a criança. Um componente chave nessa decisão é o uso criterioso da neuroimagem, especialmente em casos de TCE leve, onde o algoritmo PECARN se destaca.

Desvendando Lesões: Neuroimagem no TCE Pediátrico e o Poder do PECARN

A decisão de realizar uma neuroimagem, especialmente a Tomografia Computadorizada (TC) de crânio, é um passo crítico após a avaliação inicial de uma criança com Traumatismo Cranioencefálico (TCE). A TC é fundamental para identificar possíveis lesões intracranianas, contudo, seu uso indiscriminado, principalmente em TCE leve, expõe as crianças à radiação ionizante, um risco que buscamos minimizar. O desafio é, portanto, identificar com acurácia quem realmente se beneficia do exame.

Enquanto a TC de crânio é rotineiramente indicada em casos de TCE moderado e grave, a situação no TCE leve – que constitui a maioria dos atendimentos – é mais nuanceda. A decisão de realizar uma TC não é automática e deve ser baseada na presença de fatores de risco para uma lesão intracraniana clinicamente importante (LICI).

É nesse cenário que o estudo PECARN (Pediatric Emergency Care Applied Research Network) surge como um divisor de águas. Publicado em 2009, este estudo multicêntrico desenvolveu e validou algoritmos clínicos robustos para guiar a decisão entre realizar uma TC de crânio ou optar por um período de observação clínica em crianças com TCE leve (definido no contexto do PECARN como ECG 14-15). O objetivo principal do PECARN é reduzir o uso desnecessário de TCs, sem perder diagnósticos de LICI que necessitem de intervenção.

Os critérios PECARN são estratificados por idade, reconhecendo as particularidades de cada faixa etária:

Para crianças menores de 2 anos com TCE leve (ECG 14-15):

  • Indicação de TC de Crânio (Risco de LICI ~4,4%):
    • Escala de Coma de Glasgow (ECG) inicial de 14 (em contraste com 15).
    • Alteração do estado mental (ex: agitação, sonolência excessiva, resposta verbal/social lentificada, comportamento repetitivo, irritabilidade).
    • Presença de fratura craniana palpável.
  • Considerar TC de Crânio OU Observação Clínica (Risco de LICI ~0,9%): Se nenhum dos critérios acima estiver presente, mas houver um ou mais dos seguintes:
    • Hematoma em couro cabeludo nas regiões occipital, parietal ou temporal (excluindo hematomas exclusivamente frontais).
    • História de perda de consciência com duração de 5 segundos ou mais.
    • Mecanismo de trauma considerado grave (ex: queda de altura superior a 0,9 metros, acidente automobilístico com ejeção ou capotamento, impacto por objeto de alta energia).
    • Comportamento anormal ou não habitual, conforme relato dos pais ou cuidadores.
  • Baixo Risco de LICI (<0,02%): Se nenhum dos critérios acima estiver presente, a TC de crânio geralmente não é recomendada, e a criança pode receber alta com orientações.

Para crianças com 2 anos ou mais com TCE leve (ECG 14-15):

  • Indicação de TC de Crânio (Risco de LICI ~4,3%):
    • Escala de Coma de Glasgow (ECG) inicial de 14 (em contraste com 15).
    • Alteração do estado mental (conforme descrito acima).
    • Sinais clínicos de fratura de base de crânio (ex: hemotímpano, equimose periorbital – "olhos de guaxinim", equimose retroauricular – "sinal de Battle", rinorreia ou otorreia de líquido cefalorraquidiano).
  • Considerar TC de Crânio OU Observação Clínica (Risco de LICI ~0,8%): Se nenhum dos critérios acima estiver presente, mas houver um ou mais dos seguintes:
    • História de perda de consciência (qualquer duração).
    • História de vômitos (especialmente múltiplos episódios).
    • Mecanismo de trauma considerado grave (ex: queda de altura superior a 1,5 metros, acidente automobilístico com ejeção ou capotamento, atropelamento, impacto por objeto de alta energia, acidente de bicicleta sem capacete).
    • Cefaleia intensa e persistente.
  • Baixo Risco de LICI (<0,05%): Se nenhum dos critérios acima estiver presente, a TC de crânio geralmente não é recomendada.

Observação Clínica: Uma Alternativa Segura

Nos casos classificados pelo PECARN como de risco intermediário, a observação clínica por um período de 4 a 6 horas no departamento de emergência é uma alternativa validada e segura à realização imediata da TC. Durante esse período, a criança é monitorada quanto a qualquer sinal de piora neurológica (como rebaixamento do nível de consciência, vômitos persistentes, aparecimento de déficits focais ou convulsões). Se houver deterioração, a TC torna-se indicada. Essa estratégia permite um manejo mais conservador, poupando muitas crianças da radiação.

TC de Crânio: Com ou Sem Contraste no TCE?

No contexto agudo do TCE, a TC de crânio SEM contraste é o exame de imagem de escolha. Ela é altamente sensível para detectar as lesões traumáticas mais comuns e urgentes, como hematomas (extradurais, subdurais, intraparenquimatosos), hemorragia subaracnoide e fraturas ósseas. O uso de contraste endovenoso não adiciona valor diagnóstico para essas condições agudas no trauma e pode, inclusive, obscurecer pequenos sangramentos. A TC com contraste é reservada para outras suspeitas neurológicas, como processos infecciosos, inflamatórios ou neoplásicos, ou para avaliação vascular tardia, se indicada.

Contextualizando com Outras Diretrizes

Embora o PECARN seja uma referência fundamental para a avaliação do TCE leve pediátrico, outras regras de decisão clínica, como a Canadian CT Head Rule (desenvolvida para adultos, mas com princípios aplicáveis), compartilham a lógica de identificar pacientes de maior risco com base em achados clínicos e no mecanismo do trauma. Critérios como Glasgow < 15 após 2 horas do trauma, suspeita de fratura aberta ou com afundamento, sinais de fratura de base de crânio, múltiplos episódios de vômitos, amnésia anterógrada significativa e mecanismos de trauma de alto impacto são frequentemente citados. Além disso, a ocorrência de crises epilépticas pós-traumáticas, a presença de déficits neurológicos focais ou o uso de anticoagulantes são fortes indicativos para a realização de neuroimagem.

Em suma, a decisão de realizar uma neuroimagem em uma criança após um TCE leve é um processo criterioso. O uso de ferramentas validadas como os critérios PECARN é essencial para otimizar essa decisão, garantindo que crianças com risco significativo de lesões graves sejam prontamente identificadas e tratadas, ao mesmo tempo em que se protege a grande maioria, de baixo risco, da exposição desnecessária à radiação. A avaliação clínica minuciosa e o julgamento clínico experiente permanecem no cerne de um manejo seguro e eficaz do TCE pediátrico.

Compreendida a importância da neuroimagem e dos critérios para sua indicação, é fundamental detalhar os tipos de lesões que podem acometer o encéfalo infantil e os sinais de alerta associados a cada uma delas.

Do Leve ao Grave: Tipos de Lesões Cranianas em Crianças e Seus Sinais de Alerta

O traumatismo cranioencefálico (TCE) em crianças abrange um vasto espectro de lesões, desde as mais sutis até as potencialmente fatais. Entender essa diversidade é essencial para o manejo adequado e para reconhecer os sinais que exigem atenção imediata.

A Cascata do Dano: Lesões Primárias e Secundárias

As lesões cerebrais traumáticas são classicamente divididas em duas categorias principais, de acordo com o momento em que ocorrem:

  • Lesões Primárias: São aquelas que acontecem no momento exato do impacto na cabeça. Resultam diretamente da força mecânica aplicada ao crânio e ao tecido cerebral. Incluem:
    • Fraturas cranianas.
    • Contusões cerebrais (lesões diretas no tecido cerebral, como "machucados").
    • Lacerações de vasos sanguíneos, levando à formação de hematomas (coleções de sangue).
    • Lesão axonal difusa (estiramento e ruptura generalizada das fibras nervosas).
  • Lesões Secundárias: Desenvolvem-se após o trauma inicial, como uma cascata de eventos patológicos que podem agravar significativamente o dano cerebral e piorar o prognóstico. Os principais mecanismos incluem:
    • Hipóxia cerebral: Fornecimento inadequado de oxigênio ao cérebro.
    • Isquemia cerebral: Redução do fluxo sanguíneo para o cérebro, causada por hipotensão arterial ou aumento da pressão intracraniana (PIC).
    • Edema Cerebral: Inchaço do cérebro, contribuindo para o aumento da PIC.
    • Hemorragias que se expandem. O objetivo primário no tratamento do TCE, como mencionado anteriormente, é prevenir ou minimizar essas devastadoras lesões secundárias.

O Alcance da Lesão: Lesões Focais e Difusas

As lesões cerebrais também podem ser classificadas quanto à sua distribuição no encéfalo:

  • Lesões Focais: Afetam uma área específica e bem delimitada do cérebro. Sinais neurológicos localizatórios, como a anisocoria (diferença no tamanho das pupilas), frequentemente indicam uma lesão focal. Exemplos incluem hematomas e contusões cerebrais.
  • Lesões Difusas: Afetam o cérebro de forma mais generalizada. Exemplos incluem concussão cerebral e Lesão Axonal Difusa (LAD).

Principais Tipos de Lesões Cranianas em Detalhe

  • Concussão Cerebral:

    • Define-se como uma alteração aguda e transitória do estado mental após um trauma, podendo ou não haver perda de consciência. É considerada sinônimo de TCE leve (Escala de Coma de Glasgow 13-15).
    • Caracteriza-se por uma disfunção cerebral funcional, sem lesão estrutural macroscópica evidente na maioria dos casos.
    • Achados em imagem: A TC de crânio é frequentemente normal, especialmente em pacientes com Glasgow 15. A recuperação geralmente é completa em horas a dias.
  • Contusão Cerebral:

    • É uma lesão estrutural focal do parênquima cerebral, confirmada por exames de imagem.
    • Resulta do impacto do cérebro contra as estruturas internas do crânio (lesões de golpe e contragolpe), afetando comumente as regiões frontal e temporal basal.
    • Causa extravasamento de sangue, edema, necrose e isquemia.
    • Manifestações clínicas: Os sintomas geralmente surgem imediatamente após o trauma.
    • Achados em imagem (TC): Podem aparecer como áreas hipodensas (edema) com focos hiperdensos (sangramento).
  • Hematomas Intracranianos: Coleções de sangue que podem exercer efeito de massa.

    • Hematoma Epidural (ou Extradural): Entre a dura-máter e o osso. Frequentemente associado a fraturas cranianas (ex: osso temporal, artéria meníngea média). Na TC, classicamente apresenta-se como uma lesão biconvexa.
    • Hematoma Subdural: Entre a dura-máter e a aracnoide. Resulta da ruptura de veias ponte. Frequentemente associado a traumas de alta energia. Na TC, aparece como uma coleção em formato côncavo-convexo.
    • Hematoma Intraparenquimatoso: Coleção de sangue dentro do próprio tecido cerebral, frequentemente associada a contusões graves.
  • Lesão Axonal Difusa (LAD):

    • Lesão cerebral difusa grave, causada por forças de aceleração, desaceleração e rotação (mecanismos de cisalhamento).
    • Pode levar a coma prolongado desde o momento do trauma, sem intervalo lúcido.
    • Achados em imagem: A TC de crânio pode ser normal inicialmente ou mostrar pequenas hemorragias petequiais. A Ressonância Magnética (RM) é mais sensível.
  • Fraturas Cranianas:

    • Podem ser lineares, com afundamento, ou expostas. Cerca de dois terços estão associadas a lesões no parênquima.
    • Fraturas de Base de Crânio: Particularmente importantes devido à sua proximidade com nervos e vasos, e por criarem comunicação com o exterior. Os sinais clássicos (Sinal de Battle, "olhos de guaxinim", hemotímpano, liquorreia, otorragia) foram detalhados na seção de avaliação clínica. A suspeita é uma contraindicação para a intubação nasotraqueal.

Sinais de Alerta e Complicações Graves

  • Edema Cerebral e Efeito de Massa: O acúmulo de líquido no tecido cerebral leva ao inchaço e pode causar efeito de massa, aumentando a Pressão Intracraniana (PIC). Manifestações incluem cefaleia progressiva, vômitos em jato, letargia, alteração do nível de consciência, papiledema e, tardiamente, a Tríade de Cushing (bradicardia, hipertensão, alterações respiratórias).
  • Herniação Cerebral: Complicação gravíssima onde o tecido cerebral é deslocado através de aberturas naturais do crânio devido à PIC elevada. Sinais incluem rebaixamento súbito da consciência, anisocoria (geralmente midríase ipsilateral) e novos déficits motores.
  • Convulsões Pós-Traumáticas: Indicativo de gravidade e possível lesão neurológica subjacente.
  • Otorragia: Sangramento pelo ouvido é um sinal de alerta para fratura do osso temporal.

Desafios no Diagnóstico

Em alguns casos, pode não haver evidências externas óbvias de trauma, como na Síndrome do Bebê Sacudido. Uma alta suspeição clínica baseada na história e nas manifestações neurológicas é fundamental. A ausência de sinais externos não descarta lesão intracraniana grave.

Manejo Estratégico do TCE Pediátrico: Da Observação Cautelosa à Intervenção Especializada

O manejo do Traumatismo Cranioencefálico (TCE) em crianças e adolescentes exige uma abordagem estratégica, individualizada conforme a gravidade da lesão. O objetivo primordial é prevenir ou minimizar as lesões cerebrais secundárias, uma vez que a lesão primária é irreversível.

TCE Leve: Observação Criteriosa e Alta Segura

A maioria dos TCEs pediátricos é classificada como leve. A decisão entre TC de crânio, observação clínica ou alta hospitalar é guiada por ferramentas como o PECARN.

  • Alta com Orientações: Crianças com ECG 15, sem perda de consciência significativa, poucos sintomas e sem fatores de risco pelo PECARN, podem receber alta com instruções claras sobre sinais de alarme (vômitos persistentes, alteração da consciência, convulsões, cefaleia intensa/progressiva).
  • Observação Clínica: Indicada em TCE leve com fatores de risco moderado pelo PECARN, ou como alternativa à TC imediata em casos selecionados. Um período de observação de 4-6 horas é comum, monitorando piora neurológica. Se a TC for normal, a observação pode ser mais curta, conforme protocolos.
  • Indicação de TC de Crânio no TCE Leve: Considerada em crianças com fatores de risco significativos pelo PECARN (ex: alteração do estado mental, sinais de fratura de base de crânio, hematoma não frontal extenso), coagulopatias ou retorno ao hospital.

TCE Moderado e Grave: Intervenção Imediata e Neuroproteção Intensiva

Nos casos de TCE moderado (ECG 9-12) e grave (ECG ≤ 8), a TC de crânio é sempre mandatória e urgente. A abordagem inicial segue o ABCDE, com intubação orotraqueal prioritária em ECG ≤ 8. O pilar do tratamento é a implementação de medidas de neuroproteção:

  • Posicionamento da Cabeceira: Elevada a 30 graus, cabeça em posição neutra.
  • Sedação e Analgesia: Para reduzir metabolismo cerebral e controlar agitação (ex: RASS -4 a -5 em casos graves). Barbitúricos podem ser terapia de segunda linha para hipertensão intracraniana (HIC) refratária.
  • Controle Hemodinâmico: Evitar hipotensão arterial (PAS < 90 mmHg em adolescentes, ou ajustada para idade). Manter euvolemia e PAM adequada (ex: > 90 mmHg ou metas pediátricas).
  • Otimização da Oxigenação e Ventilação: SpO2 > 94% e normocapnia (PaCO2 entre 35-45 mmHg, algumas referências pediátricas 30-40 mmHg).
  • Controle da Temperatura: Manter normotermia (temperatura central < 38°C).
  • Controle Glicêmico: Evitar hipo e hiperglicemia acentuada.
  • Profilaxia de Convulsões: Considerar fenitoína profilática em TCE grave nos primeiros 7 dias.
  • Manejo da Coagulopatia: Comum em TCE grave. Monitorar e corrigir (ex: plaquetas > 75.000/µL).

A decisão de observação hospitalar prolongada versus intervenção neurocirúrgica dependerá dos achados da TC, evolução clínica e monitorização da PIC. O foco é na prevenção de lesões secundárias.

Além da Fase Aguda: Complicações, Prognóstico e Cuidados Continuados no TCE Pediátrico

Superada a fase crítica inicial do Traumatismo Cranioencefálico (TCE) pediátrico, a atenção se volta para as possíveis complicações, o prognóstico a longo prazo e a necessidade de cuidados continuados.

Complicações Neurológicas e Intervenções

  • Crises Convulsivas Pós-TCE:

    • Crises Sintomáticas Agudas: Ocorrem na primeira semana pós-trauma. Podem agravar o dano cerebral, especialmente com hipertensão intracraniana (HIC).
    • Manejo e Profilaxia: O tratamento da crise instalada envolve anticonvulsivantes. A profilaxia com fenitoína ou levetiracetam por até 12 semanas pode ser considerada para pacientes de alto risco ou quando uma crise seria grave (ex: HIC descompensada), guiada por EEG/RM. A intubação orotraqueal (IOT) não é automática após uma crise se o paciente recuperar a consciência rapidamente, sendo mais ligada ao ECG ≤ 8 ou risco de aspiração no contexto do TCE.
  • Manejo Cirúrgico de Sangramento e Herniação Cerebral:

    • Hematomas expansivos podem levar à herniação.
    • Indicação Cirúrgica: Em pacientes com sangramento extra-axial significativo e sinais de herniação, o manejo cirúrgico (craniotomia) é frequentemente a conduta para drenar hematomas e aliviar a PIC.
    • Medidas para Prevenir Herniação: Enquanto se aguarda ou em conjunto com a cirurgia, medidas para controlar a HIC incluem manter cabeceira elevada a 30 graus, uso de agentes osmóticos (manitol, salina hipertônica), sedação, analgesia e controle de temperatura.

Prognóstico, Aspectos Crônicos e Sequelas

A lesão cerebral pós-traumática pode evoluir com diversas manifestações crônicas, como déficits motores, sensitivos, cognitivos, comportamentais e emocionais. A epilepsia pós-traumática (crises após a primeira semana) é uma complicação significativa. O prognóstico depende da gravidade inicial, tratamento e complicações, podendo exigir reabilitação intensiva e acompanhamento multidisciplinar.

Outras Considerações Importantes

  • Poliúria: Pacientes com TCE grave podem desenvolver poliúria, possivelmente por diabetes insipidus neurogênico, requerendo investigação.

  • Diagnósticos Diferenciais: Quando a história é incerta ou há sintomas atípicos:

    • Neoplasias do SNC Pediátricas: Tumores podem causar cefaleia progressiva (piora ao deitar, desperta à noite), vômitos em jato, alterações de marcha e crises convulsivas. Frequentemente localizados na fossa posterior.
    • Infecções do SNC (Meningite, Encefalite): Podem cursar com alteração da consciência, febre, vômitos, convulsões. Meningite é causa de epilepsia em crianças pequenas.
    • Intoxicações: Podem levar a alterações neurológicas e quedas, resultando em TCE. A presença de intoxicação é critério para TC de crânio. Vômitos em jato podem ocorrer.
    • Acidente Vascular Encefálico (AVE) em Crianças: Embora menos comum, pode ocorrer, apresentando déficits focais súbitos.

O acompanhamento pós-TCE pediátrico é um processo dinâmico que exige vigilância para complicações tardias e um plano de reabilitação abrangente.

Dominar a avaliação, o diagnóstico e o manejo do TCE pediátrico é uma competência crucial para todos os profissionais de saúde que atendem crianças. Desde o reconhecimento das particularidades anatômicas e dos mecanismos de lesão, passando pela aplicação criteriosa de ferramentas como o PECARN para guiar a neuroimagem, até a implementação de estratégias de neuroproteção e o acompanhamento das possíveis sequelas, cada etapa exige conhecimento e atenção. Esperamos que este guia tenha fortalecido sua confiança e habilidade para enfrentar esses casos complexos, priorizando sempre a prevenção de lesões secundárias e a busca pelo melhor desfecho possível.

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