A cetoacidose diabética (CAD) representa uma das mais sérias ameaças agudas para indivíduos com diabetes, uma emergência médica que exige compreensão profunda e ação rápida. Este guia completo foi elaborado por nossa equipe editorial para capacitar tanto profissionais de saúde quanto pacientes e seus cuidadores, desvendando os mecanismos da CAD, desde suas causas e sinais de alerta até as estratégias de tratamento mais atuais e, crucialmente, as medidas preventivas. Nosso objetivo é fornecer um recurso claro, prático e baseado em evidências para navegar por essa condição complexa, visando melhores desfechos e maior segurança para quem convive com o diabetes.
O Que é Cetoacidose Diabética (CAD)? Entendendo Causas e Fisiopatologia
A Cetoacidose Diabética (CAD) é uma das complicações agudas mais graves e potencialmente fatais do diabetes mellitus. Embora seja classicamente associada ao Diabetes Mellitus tipo 1 (DM1), onde pode inclusive ser a primeira manifestação da doença em cerca de 25% a 40% dos casos, a CAD também pode ocorrer em pacientes com Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2), especialmente durante períodos de estresse fisiológico intenso, e até mesmo em casos de diabetes gestacional. Trata-se de uma emergência médica que exige diagnóstico e tratamento rápidos.
A fisiopatologia da CAD é complexa, mas gira em torno de dois pilares centrais: a deficiência acentuada de insulina (insulinopenia) e o aumento dos hormônios contrarreguladores.
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Deficiência de Insulina: A insulina é um hormônio anabólico crucial que, entre outras funções, permite que a glicose entre nas células para ser utilizada como energia e inibe a quebra de gorduras (lipólise) e a produção de glicose pelo fígado. Na CAD, ocorre uma deficiência severa de insulina, seja ela absoluta (como na destruição autoimune das células beta pancreáticas no DM1) ou relativa (quando as necessidades de insulina aumentam drasticamente em situações de estresse no DM2, superando a capacidade de produção do pâncreas). Essa insulinopenia tem consequências drásticas:
- Hiperglicemia: A glicose não consegue entrar adequadamente nas células (levando a uma "fome celular" ou hipoglicemia celular, apesar dos altos níveis de glicose no sangue). Além disso, a falta de insulina estimula o fígado a produzir mais glicose através da glicogenólise (quebra do glicogênio armazenado) e da gliconeogênese (formação de nova glicose a partir de precursores como aminoácidos, oriundos da proteólise ou quebra de proteínas). A hiperglicemia resultante leva a uma diurese osmótica (aumento do volume urinário devido à excreção de glicose pelos rins), causando desidratação e perda significativa de eletrólitos como sódio, potássio e fosfato.
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Aumento dos Hormônios Contrarreguladores: Em resposta à deficiência de insulina e ao "estresse" percebido pelo organismo (seja ele uma infecção, trauma, ou a própria falta de insulina), há um aumento significativo na secreção de hormônios contrarreguladores, como o glucagon, as catecolaminas (adrenalina e noradrenalina), o cortisol e o hormônio do crescimento (GH). Estes hormônios exacerbam a hiperglicemia (estimulando ainda mais a glicogenólise e a gliconeogênese) e, crucialmente, promovem a lipólise – a quebra de triglicerídeos no tecido adiposo em ácidos graxos livres (AGL) e glicerol.
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Produção de Corpos Cetônicos (Cetogênese) e Acidose Metabólica: Os AGL liberados em excesso são transportados para o fígado. Sob a influência do glucagon elevado e da baixa insulina, o fígado converte esses AGL em corpos cetônicos:
- Ácido acetoacético (AcAc)
- Ácido β-hidroxibutírico (β-HB) – o principal corpo cetônico na CAD.
- Acetona (um produto volátil da descarboxilação do acetoacetato, responsável pelo hálito frutado ou cetônico). O acúmulo desses corpos cetônicos no sangue (cetonemia) e sua excreção na urina (cetonúria) são marcas registradas da CAD. Como o ácido acetoacético e o ácido β-hidroxibutírico são ácidos orgânicos, seu acúmulo leva ao consumo das reservas de bicarbonato (o principal tampão do sangue), resultando em uma acidose metabólica com ânion gap elevado. Esta acidose é a responsável por muitos dos sintomas graves da CAD, incluindo a respiração rápida e profunda (respiração de Kussmaul), uma tentativa do corpo de compensar a acidose eliminando CO₂.
Principais Fatores Desencadeantes (Precipitantes) da CAD:
Diversas situações podem precipitar um episódio de CAD em indivíduos com diabetes. A identificação e o tratamento desses fatores são cruciais para a resolução do quadro. Os mais comuns incluem:
- Infecções (30-40% dos casos): São os gatilhos mais frequentes. Pneumonias e infecções do trato urinário são particularmente comuns. Qualquer infecção pode aumentar a resistência à insulina e a demanda metabólica, desencadeando a CAD.
- Omissão ou Uso Inadequado de Insulina: Interrupção da insulinoterapia, doses insuficientes, ou mau funcionamento de bombas de infusão de insulina são causas importantes, especialmente em pacientes com DM1.
- Diagnóstico Inicial de Diabetes: Como mencionado, a CAD pode ser a primeira manifestação do DM1.
- Doenças Agudas Graves: Condições como infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC), pancreatite aguda, sepse ou trauma aumentam significativamente o estresse fisiológico e a necessidade de insulina.
- Uso de Certas Medicações:
- Corticosteroides: Aumentam a glicemia e a resistência à insulina.
- Diuréticos tiazídicos (em altas doses).
- Agentes simpatomiméticos.
- Antipsicóticos atípicos.
- Inibidores do cotransportador de sódio-glicose 2 (iSGLT2): Podem, em certas situações (especialmente em DM1 ou em jejum prolongado), levar à CAD, por vezes com níveis de glicose não tão elevados (CAD euglicêmica).
- Uso de Substâncias: Como a cocaína.
- Outros: Transtornos alimentares, estresse emocional significativo.
Entender a definição, a complexa cascata fisiopatológica e os fatores desencadeantes da CAD é fundamental para o seu reconhecimento precoce, manejo adequado e, idealmente, sua prevenção. A evolução da CAD é tipicamente rápida, desenvolvendo-se em menos de 24 horas, o que reforça a necessidade de atenção imediata aos seus sinais e sintomas.
Sinais de Alerta e Diagnóstico Preciso da Cetoacidose Diabética
A Cetoacidose Diabética (CAD) é uma emergência médica que exige reconhecimento rápido e intervenção imediata. Identificar precocemente seus sinais e sintomas é crucial para um desfecho favorável. Esta seção detalha as manifestações clínicas, os achados laboratoriais essenciais e os critérios diagnósticos para a CAD.
Manifestações Clínicas: Os Primeiros Sinais de Alerta
O quadro clínico da CAD pode se desenvolver rapidamente, muitas vezes em menos de 24 horas, e é resultado da deficiência de insulina e do excesso de hormônios contrarreguladores. Os sintomas podem variar em intensidade, mas alguns são bastante característicos:
- Sintomas clássicos de hiperglicemia:
- Poliúria: Aumento do volume urinário devido à glicosúria osmótica.
- Polidipsia: Sede excessiva, uma tentativa do corpo de compensar a perda de fluidos.
- Polifagia: Aumento da fome, embora possa estar ausente ou diminuída com a progressão da CAD.
- Perda de peso inexplicada: Resultante da incapacidade das células de utilizarem glicose e da quebra de proteínas e gorduras.
- Sintomas gastrointestinais:
- Náuseas e vômitos: Muito comuns e contribuem para a desidratação e desequilíbrios eletrolíticos.
- Dor abdominal: Um sintoma frequente, especialmente em crianças, podendo ser difusa e intensa, por vezes simulando um quadro de abdome agudo cirúrgico. A intensidade da dor abdominal parece estar relacionada ao grau de acidose metabólica. Acredita-se que fatores como gastroparesia induzida pela hiperosmolaridade e aumento da secreção de prostaglandinas contribuam para essa dor.
- Sinais de desidratação e acidose:
- Taquicardia: Frequência cardíaca aumentada.
- Hipotensão arterial: Pressão arterial baixa em casos mais graves de desidratação.
- Taquipneia e Respiração de Kussmaul: Respiração rápida e profunda, uma tentativa do organismo de compensar a acidose metabólica eliminando CO₂.
- Hálito cetônico: Odor adocicado, frutado (semelhante a maçã podre ou removedor de esmalte) devido à exalação de acetona.
- Sintomas neurológicos:
- Visão turva.
- Fraqueza, fadiga e letargia.
- Confusão mental, sonolência.
- Diminuição do nível de consciência, podendo progredir para coma em casos graves.
Achados Laboratoriais Cruciais
A confirmação diagnóstica da CAD depende de achados laboratoriais específicos:
- Hiperglicemia: Geralmente, os níveis de glicose sanguínea estão elevados, tipicamente acima de 250 mg/dL. No entanto, como veremos, a CAD euglicêmica é uma exceção importante.
- Cetonemia e/ou Cetonúria: A presença de corpos cetônicos é um pilar diagnóstico.
- Cetonemia: A medição do β-hidroxibutirato (β-HB) no sangue é o método preferencial e mais preciso para diagnosticar e monitorar a cetose.
- Cetonúria: Detectada por fitas reagentes na urina, que utilizam a reação do nitroprussiato. Esta reação detecta principalmente o acetoacetato e, em menor grau, a acetona, mas não o β-HB. Assim, em fases iniciais da CAD, onde o β-HB predomina, a cetonúria pode subestimar a gravidade da cetose ou, raramente, ser negativa. A cetonúria é útil para o diagnóstico inicial, mas não para monitorar a resolução da CAD, pois pode permanecer positiva mesmo após a normalização da cetonemia.
- Acidose Metabólica com Ânion Gap Elevado:
- Gasometria arterial ou venosa: Revela um pH sanguíneo baixo (geralmente < 7,3) e um nível de bicarbonato (HCO₃⁻) reduzido (geralmente < 18 mEq/L em adultos e < 15 mEq/L em crianças).
- Ânion Gap (AG) Elevado: Calculado como
AG = Na⁺ - (Cl⁻ + HCO₃⁻)
. Um valor > 10-12 mEq/L (dependendo da referência do laboratório) sugere a presença de ácidos não mensurados, como os cetoácidos.
- Leucocitose: É comum encontrar contagem elevada de leucócitos, frequentemente entre 10.000 e 15.000/µL. Essa leucocitose pode ocorrer mesmo na ausência de infecção, devido ao estresse fisiológico, e sua intensidade pode ser proporcional ao grau de cetonemia. No entanto, uma leucocitose muito acentuada (ex: > 25.000/µL) ou com desvio à esquerda significativo (>10% de formas jovens) deve levantar a suspeita de uma infecção concomitante.
Critérios Diagnósticos
Os critérios diagnósticos variam ligeiramente entre adultos e crianças:
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Adultos (segundo a American Diabetes Association - ADA):
- Glicemia > 250 mg/dL
- pH arterial < 7,3
- Bicarbonato sérico ≤ 18 mEq/L
- Presença de cetonúria ou cetonemia
- Ânion gap elevado (geralmente > 10-12 mEq/L)
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Crianças e Adolescentes (segundo a International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes - ISPAD):
- Glicemia > 200 mg/dL (ou 11 mmol/L)
- pH venoso < 7,3 ou bicarbonato sérico < 15 mmol/L
- Cetose: Cetonemia (β-hidroxibutirato ≥ 3 mmol/L) ou cetonúria (≥ 2+ na fita)
Cetoacidose Diabética Euglicêmica (CADe)
Uma variante importante é a Cetoacidose Diabética Euglicêmica (CADe), na qual os critérios de acidose e cetose são preenchidos, mas a glicemia é inferior a 250 mg/dL. A CADe pode ocorrer em situações como:
- Uso de inibidores do cotransportador sódio-glicose 2 (iSGLT2)
- Gravidez
- Jejum prolongado ou baixa ingesta de carboidratos
- Consumo excessivo de álcool
- Doença hepática crônica
- Após administração de insulina antes da chegada ao serviço de emergência
Nestes casos, a suspeita clínica e a medição de cetonas (especialmente β-hidroxibutirato sérico) e a gasometria são fundamentais.
Diagnóstico Diferencial
É crucial diferenciar a CAD de outras condições:
- Estado Hiperglicêmico Hiperosmolar (EHH): Geralmente com hiperglicemia mais acentuada, maior desidratação, osmolaridade sérica elevada e ausência ou mínima cetose e acidose.
- Cetoacidose Alcoólica: Em etilistas crônicos após consumo intenso seguido de jejum e vômitos.
- Cetoacidose de Jejum: Acidose costuma ser leve.
- Outras causas de acidose metabólica com ânion gap elevado: Intoxicações (salicilatos, metanol, etilenoglicol), acidose lática.
- Condições que causam dor abdominal e vômitos: Pancreatite aguda, gastroenterite, apendicite.
Um histórico clínico detalhado, exame físico cuidadoso e a interpretação correta dos exames laboratoriais são essenciais para um diagnóstico preciso.
Pilares do Tratamento da Cetoacidose Diabética: Abordagem Inicial e Monitorização
A Cetoacidose Diabética (CAD) é uma emergência médica que exige intervenção rápida e coordenada. O tratamento visa corrigir as profundas alterações metabólicas e clínicas, restaurando o equilíbrio do organismo. Os objetivos terapêuticos centrais incluem:
- Corrigir a desidratação e restaurar o volume intravascular.
- Reverter a acidose metabólica e a cetose.
- Normalizar gradualmente a glicemia e a osmolaridade plasmática.
- Corrigir os distúrbios eletrolíticos, especialmente do potássio.
- Identificar e tratar os fatores precipitantes.
- Monitorar e prevenir complicações.
O manejo da CAD se apoia em pilares fundamentais:
- Estabilização Clínica e Reposição Volêmica: Esta é a primeira e mais crítica etapa.
- Avaliação e Correção da Calemia (Níveis de Potássio): Essencial antes de iniciar a insulinoterapia.
- Insulinização: Para reverter a deficiência de insulina, cessar a produção de corpos cetônicos e controlar a hiperglicemia.
- Avaliação da Necessidade de Bicarbonato Venoso: Reservado para casos de acidose muito grave (geralmente pH < 6,9).
- Investigação e Abordagem dos Fatores Precipitantes: Como infecções, que devem ser investigadas e podem necessitar de antibioticoterapia específica se confirmadas.
Abordagem Inicial e Monitorização na Primeira Hora
A "hora de ouro" no tratamento da CAD é focada na estabilização hemodinâmica.
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Reposição Volêmica Agressiva (mas criteriosa):
- A prioridade é a hidratação venosa imediata com solução salina isotônica (NaCl 0,9%).
- O volume na primeira hora é tipicamente de 15-20 mL/kg de peso corporal (1.000 a 1.500 mL para um adulto). Em choque hipovolêmico, bolus de 20 mL/kg podem ser administrados rapidamente.
- Objetivos da hidratação: Restaurar a perfusão tecidual, melhorar a função renal (aumentando a excreção de glicose e cetonas), diluir a glicose sanguínea e os corpos cetônicos, e reduzir os níveis de hormônios contrarreguladores, o que diminui a resistência periférica à insulina. A hidratação por si só já pode levar a uma queda inicial da glicemia.
- A correção do déficit hídrico total (que pode chegar a 6 litros ou mais) deve ser progressiva, ao longo de 24 a 48 horas, para evitar complicações como edema cerebral.
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Monitorização Contínua e Laboratorial:
- Monitorização rigorosa dos sinais vitais e do débito urinário.
- Exames laboratoriais (a cada 1-2 horas inicialmente):
- Glicemia capilar e sérica.
- Eletrólitos (sódio, potássio, cloreto, bicarbonato, fósforo, magnésio): O potássio (K+) sérico merece atenção especial. Apesar de um déficit corporal total, os níveis séricos iniciais podem estar normais ou elevados. A insulinoterapia promove a entrada de potássio nas células, podendo causar hipocalemia grave. A insulina NÃO deve ser iniciada se o K+ estiver < 3,3 mEq/L sem reposição prévia.
- Gasometria venosa (ou arterial): Para pH, HCO₃-, pCO₂, e ânion gap.
- Cetonas séricas (beta-hidroxibutirato) ou urinárias.
- Função renal (ureia e creatinina) e osmolaridade sérica calculada.
Sequência de Intervenções na Primeira Hora:
- Medidas Gerais de Suporte: Vias aéreas pérvias, oxigênio suplementar se necessário, acesso venoso calibroso, jejum inicial.
- Iniciar Reposição Volêmica: Com NaCl 0,9%.
- Coleta de Amostras Laboratoriais.
- Avaliação Crítica do Potássio Sérico: Fundamental para guiar o início da insulinoterapia. Se K+ < 5,0 - 5,5 mEq/L (ou < 4,5 mEq/L em crianças), a reposição de potássio deve ser considerada ou iniciada com a hidratação.
A abordagem inicial correta é determinante para um desfecho favorável.
Manejo da Insulinoterapia na CAD: Da Emergência à Transição Segura
A insulinoterapia é a pedra angular no tratamento da Cetoacidose Diabética (CAD), atuando para reverter a cetogênese e corrigir a hiperglicemia.
Fase Aguda: A Supremacia da Insulina Endovenosa
- Tipo de Insulina e Via de Administração: Insulina regular humana por via endovenosa (IV) contínua, preferencialmente por bomba de infusão contínua (BIC).
- Dosagem Inicial:
- Adultos e crianças: 0,1 UI/kg/hora. ISPAD sugere 0,05 a 0,1 UI/kg/hora para crianças.
- Importante: O bolus inicial de insulina IV é fortemente desencorajado, especialmente em crianças, devido ao risco de edema cerebral e hipocalemia.
- Atenção ao Potássio: A insulina promove a entrada de potássio nas células. A insulinoterapia NÃO deve ser iniciada se o potássio sérico estiver abaixo de 3,3 mEq/L. Corrigir a hipocalemia primeiro. Se K+ entre 3,3 e 5,3 mEq/L, iniciar insulina com reposição de potássio.
- Monitoramento e Ajustes:
- Glicemia capilar de hora em hora.
- Objetivo: redução gradual da glicemia, entre 50 a 70 mg/dL por hora.
- Ajustar taxa de infusão conforme resposta glicêmica.
- Prevenindo a Hipoglicemia com Soro Glicosado: Quando a glicemia atingir 200-250 mg/dL, adicionar dextrose (soro glicosado a 5% ou 10%) à hidratação venosa. Manter a infusão de insulina para tratar a acidose, sem causar hipoglicemia.
Alternativas à Via Endovenosa (Situações Específicas)
Em CAD leve ou acesso IV inviável:
- Insulina regular intramuscular (IM): A cada hora.
- Análogos de insulina ultrarrápidos (lispro, asparte, glulisina) subcutâneos (SC): A cada 1 a 2 horas.
Transição Segura para a Insulinoterapia Subcutânea
- Critérios para Transição:
- Glicemia inferior a 200-250 mg/dL.
- pH venoso superior a 7,3.
- Bicarbonato sérico superior a 15-18 mEq/L.
- Ânion gap normalizado.
- Corpos cetônicos no sangue (beta-hidroxibutirato) ≤ 1 mmol/L ou ausentes na urina.
- Paciente clinicamente estável, alerta e capaz de se alimentar.
- O Processo de Transição:
- Administrar a primeira dose do esquema de insulina subcutânea.
- Aguardar 1 a 2 horas (algumas referências sugerem até 2-4 horas) APÓS a aplicação da insulina subcutânea antes de DESLIGAR a bomba de infusão de insulina IV. Este período de sobreposição é essencial.
- O paciente deve realizar uma refeição após a insulina SC prandial.
Este manejo cuidadoso da insulinoterapia é vital para a recuperação segura.
Equilíbrio Hidroeletrolítico na CAD: Reposição de Fluidos, Potássio e Outros Eletrólitos
A correção das alterações hidroeletrolíticas é um pilar fundamental no tratamento da Cetoacidose Diabética (CAD).
Reposição de Fluidos: A Base da Estabilização
A reposição volêmica vigorosa é o primeiro passo. Pacientes em CAD têm déficit de fluidos (6-10 litros). A restauração do volume intravascular não só corrige a hipovolemia, mas também otimiza a função renal para excreção de glicose e cetonas, além de atenuar a resposta dos hormônios contrarreguladores, facilitando a ação da insulina.
- Solução de Escolha Inicial: Solução salina isotônica (NaCl 0,9%).
- Administração:
- Fase Rápida (Choque/Hipovolemia Grave): 15-20 mL/kg na primeira hora.
- Fase de Reposição (Estável): Repor déficit ao longo de 24-48 horas.
- Ajuste da Solução: Após avaliação do sódio sérico corrigido (Na corrigido = Na medido + 0,016 x [Glicemia mg/dL - 100]):
- Se Na corrigido normal ou elevado, considerar NaCl 0,45%.
- Se Na corrigido baixo, manter NaCl 0,9%.
Manejo do Potássio (K+): O Eletrólito Crítico
- O Paradoxo do Potássio: O potássio corporal total está depletado, mas os níveis séricos podem estar normais, elevados ou baixos devido ao shift transcelular pela acidose e deficiência de insulina.
- Risco de Hipocalemia Induzida pelo Tratamento: Insulina e correção da acidose deslocam K+ para o interior das células.
- Monitorização e Reposição:
- Verificar calemia antes de iniciar insulina e monitorar frequentemente (a cada 2-4 horas).
- Se K+ < 3,3 mEq/L: Adiar insulina e repor K+ (20-40 mEq/hora) até ≥ 3,3 mEq/L.
- Se K+ entre 3,3 e 5,2-5,3 mEq/L: Iniciar insulina e repor K+ (20-30 mEq/L de solução) para manter níveis entre 4,0 e 5,0 mEq/L.
- Se K+ > 5,2-5,3 mEq/L: Iniciar insulina sem reposição inicial de K+, monitorar de perto.
- A hipocalemia (<3,5 mEq/L) pode causar arritmias, fraqueza muscular e parada respiratória.
Outros Eletrólitos: Sódio, Fosfato, Magnésio e Cálcio
- Sódio (Na+): A hiperglicemia causa hiponatremia dilucional; usar sódio corrigido para guiar fluidoterapia.
- Fosfato (PO4): Níveis séricos podem estar normais/elevados, mas fosfato corporal total está depletado. Reposição rotineira não recomendada; considerar em hipofosfatemia grave (<1 mg/dL) ou disfunção orgânica.
- Magnésio (Mg++): Depleção comum. Reposição se hipomagnesemia sintomática.
- Cálcio (Ca++): Geralmente não afetado, a menos que reposição agressiva de fosfato cause hipocalcemia.
A Controvérsia do Bicarbonato de Sódio
O uso de bicarbonato de sódio é não recomendado de rotina.
- Indicações Restritas (Adultos): pH arterial < 6,9 associado a instabilidade hemodinâmica ou hipercalemia com risco de vida, após otimização da volemia.
- Riscos: Acidose cerebral paradoxal, hipocalemia, sobrecarga de volume, alcalose de rebote.
- Pediatria: Geralmente evitado devido ao risco de edema cerebral.
A insulinoterapia é o tratamento primário para a correção da acidose.
Acidose Hiperclorêmica
Pode desenvolver-se uma acidose metabólica hiperclorêmica com ânion gap normal durante o tratamento com grandes volumes de NaCl 0,9%. Geralmente é transitória.
Complicações da CAD e Populações Específicas: Edema Cerebral e Manejo Pediátrico
A Cetoacidose Diabética (CAD) pode levar a complicações graves, exigindo atenção especial em populações como crianças.
Complicações da Cetoacidose Diabética: Além da Crise Aguda
As mortes relacionadas à CAD, embora raras, estão mais frequentemente associadas ao edema cerebral e distúrbios eletrolíticos graves (ex: hipocalemia). Outras complicações incluem:
- Hipoglicemia.
- Comprometimento cognitivo.
- Eventos trombóticos.
- Infecções oportunistas (ex: mucormicose).
- Arritmias cardíacas.
- Lesão renal aguda (LRA).
- Edema pulmonar (raro).
- Pancreatite aguda.
- Hipotermia.
Infecções são desencadeantes comuns; a ausência de febre não as descarta.
Edema Cerebral: A Complicação Mais Temida da CAD
O edema cerebral é a complicação mais grave, especialmente em crianças (0,3-0,9% dos episódios de CAD, alta mortalidade e sequelas).
Fisiopatologia: Multifatorial, envolvendo rápida redução da osmolaridade plasmática, alterações no fluxo sanguíneo cerebral, inflamação.
Fatores de Risco: Idade < 5 anos, diagnóstico recente de DM, acidose grave, ureia elevada, hipocapnia, uso de bicarbonato, falha no aumento do sódio sérico, grandes volumes de fluidos ou correção muito rápida da glicemia.
Diagnóstico: Primariamente clínico. Sinais de alerta: cefaleia, vômitos incoercíveis, alteração do nível de consciência, irritabilidade, resposta motora/verbal anormal à dor, paralisia de nervos cranianos, padrão respiratório anormal.
Prevenção: Correção gradual da glicemia, reposição volêmica cuidadosa (déficit em 24-48h), monitorização neurológica frequente, evitar uso rotineiro de bicarbonato.
Manejo: Se suspeito, iniciar imediatamente: Manitol (0,5-1,0 g/kg IV) ou salina hipertônica (3%), restrição hídrica, elevação da cabeceira, oxigênio, avaliação para intubação.
Particularidades da CAD em Crianças e Adolescentes
A CAD pediátrica é a descompensação aguda mais grave, podendo ser a manifestação inicial do DM1 (cerca de 30%).
Critérios Diagnósticos da ISPAD:
- Hiperglicemia: > 200 mg/dL.
- Acidose Metabólica: pH venoso < 7,3 ou bicarbonato sérico < 15 mmol/L.
- Cetose: β-hidroxibutirato ≥ 3 mmol/L ou cetonúria ≥ 2+.
Pilares do Manejo Pediátrico (ISPAD):
- Estabilização e Reposição de Volume.
- Avaliação e Correção da Calemia.
- Insulinoterapia.
- Avaliação da Necessidade de Bicarbonato Venoso (raramente indicado, pH < 6,9 com cautela).
- Tratamento dos Fatores Precipitantes.
Manejo Volêmico Pediátrico (ISPAD):
- Ressuscitação (choque): NaCl 0,9% 10-20 mL/kg em 30-60 min.
- Correção do Déficit e Manutenção: Déficit (5-10% peso) corrigido em 24-48h com fluidos de manutenção. Usar soluções salinas (0,45% ou 0,9%) ou cristaloides balanceados.
Insulinoterapia na CAD Pediátrica:
- Início: 1-2h após reidratação, K+ ≥ 3,5 mEq/L.
- Dose: Infusão contínua de insulina regular IV 0,05 a 0,1 UI/kg/hora.
- Sem bolus inicial de insulina EV.
- Objetivo: Redução glicêmica 50-100 mg/dL/hora.
- Adicionar glicose (5% ou 10%) à solução quando glicemia atingir 250-300 mg/dL.
Critérios de Resolução da CAD Pediátrica (ISPAD): Glicemia < 200 mg/dL, pH venoso > 7,3 ou HCO₃⁻ > 15 mmol/L, ânion gap normalizado ou β-HB ≤ 1 mmol/L, paciente tolera ingesta oral.
O paciente geralmente permanece em dieta zero até a resolução.
Resolução da Cetoacidose Diabética e Estratégias de Prevenção de Recorrências
Superar um episódio de Cetoacidose Diabética (CAD) requer identificação precisa da resolução e estratégias para prevenir recorrências.
Critérios para a Resolução da Cetoacidose Diabética: Quando o Perigo Passa
A resolução da CAD é definida pela reversão do processo metabólico agudo:
- Glicemia: ≤ 200 mg/dL.
- E pelo menos dois dos seguintes:
- pH venoso: ≥ 7,3.
- Bicarbonato sérico (HCO₃⁻): ≥ 15 mEq/L (ADA 2024 sugere > 18 mEq/L).
- Cetonemia: Negativa, ou níveis de β-hidroxibutirato ≤ 1 mmol/L ou < 0,6 mmol/L.
- O ânion gap, embora tradicionalmente usado, foi removido dos critérios principais pela ADA 2024, mas ainda é considerado pela ISPAD.
A melhora clínica e a capacidade de tolerar alimentação oral são também importantes.
Transição Segura para Cuidados de Rotina
Uma vez atingidos os critérios de resolução e o paciente apto a se alimentar, inicia-se a transição da insulinoterapia EV para SC. A transição para a insulinoterapia subcutânea (SC) deve seguir o protocolo de sobreposição já discutido, administrando-se a insulina SC (geralmente 1-2 horas, ou até 2-4 horas conforme algumas referências) antes da interrupção da infusão EV, para evitar a recorrência da hiperglicemia e cetose.
Prevenindo Novos Episódios: Um Compromisso Contínuo
A prevenção de recorrências exige uma abordagem multifacetada:
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Educação do Paciente e Autocuidado:
- Adesão ao tratamento: Administração regular de insulina.
- Monitoramento glicêmico e de cetonas: Especialmente em doença ou hiperglicemia (> 250 mg/dL).
- Reconhecimento de sinais de alerta de hiperglicemia e cetose.
- "Regras para Dias de Doença" (Sick Day Rules):
- Nunca omitir insulina (pode necessitar ajuste).
- Aumentar monitoramento glicêmico/cetonas.
- Manter hidratação.
- Saber quando procurar assistência médica.
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Identificação e Mitigação de Fatores de Risco:
- Infecções.
- Omissão de doses de insulina.
- Estresse físico ou emocional.
- Uso inadequado de medicamentos.
- Diagnóstico recente de DM1.
- Problemas com dispositivos de infusão de insulina.
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Acompanhamento Médico Regular: Consultas para ajustar terapia, revisar autocuidado e reforçar educação.
A prevenção é um esforço colaborativo e contínuo para reduzir a incidência desta grave complicação.
Dominar os aspectos da cetoacidose diabética, desde a sua complexa fisiopatologia até as nuances do tratamento e estratégias de prevenção, é vital para todos os envolvidos no cuidado do diabetes. Este guia buscou oferecer uma visão abrangente e atualizada, capacitando profissionais de saúde para intervenções eficazes e pacientes para um autocuidado mais seguro e informado. A prevenção, baseada na educação e no acompanhamento contínuo, permanece como a melhor ferramenta contra essa grave complicação.
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