Acidose Metabólica: Fisiopatologia, Classificação (Ânion Gap) e Etiologias

Ilustração de um rim humano com túbulos renais em destaque, simbolizando a acidose metabólica e a tentativa de regulação.
Ilustração de um rim humano com túbulos renais em destaque, simbolizando a acidose metabólica e a tentativa de regulação.

A acidose metabólica constitui um dos distúrbios primários do equilíbrio ácido-base. Este artigo aborda a definição, mecanismos fisiopatológicos, compensação respiratória, classificação pelo ânion gap e suas principais causas, fornecendo uma base sólida para a compreensão e o diagnóstico diferencial deste importante distúrbio ácido-base.

O que é Acidose Metabólica? Definição e Conceitos Fundamentais

A acidose metabólica é caracterizada por uma diminuição primária na concentração de bicarbonato (HCO₃⁻) no plasma sanguíneo, resultando no acúmulo relativo de íons hidrogênio (H⁺) e, consequentemente, na diminuição do pH sanguíneo.

É essencial distinguir os termos "acidose" e "acidemia". Acidose refere-se ao processo fisiopatológico que tende a diminuir o pH sanguíneo. Acidemia descreve o estado real do sangue, caracterizado por um pH arterial abaixo da faixa de referência fisiológica, tipicamente definido como pH < 7,35. Laboratorialmente, a acidose metabólica é identificada por um HCO₃⁻ sérico < 22 mEq/L, associado a um pH arterial < 7,35.

Os mecanismos fisiopatológicos que podem desencadear a acidose metabólica são:

  • Aumento na produção ou adição de ácidos: Produção endógena aumentada de ácidos não voláteis (ácido lático ou cetoácidos) ou ingestão/administração de ácidos/precursores, consumindo o bicarbonato plasmático.
  • Perda excessiva de bicarbonato: Depleção direta das reservas de bicarbonato, seja através do trato gastrointestinal (diarreia) ou renal (acidose tubular renal).
  • Diminuição da excreção renal de ácidos: Incapacidade dos rins em eliminar adequadamente a carga ácida diária, resultando na retenção de H⁺ e consumo de bicarbonato (insuficiência renal).

Fisiopatologia e Mecanismos Compensatórios da Acidose Metabólica

O organismo utiliza mecanismos compensatórios para mitigar a queda do pH. O principal e mais rápido é a resposta respiratória, com a acidemia estimulando a hiperventilação para aumentar a eliminação de dióxido de carbono (CO₂), diminuindo a pressão parcial de CO₂ (pCO₂) no sangue arterial e elevando o pH sanguíneo.

Para avaliar a adequação dessa resposta compensatória respiratória, utiliza-se a Fórmula de Winter: pCO₂ esperada = (1,5 x [HCO₃⁻]) + 8 ± 2. A comparação entre a pCO₂ medida na gasometria arterial e o valor esperado pela fórmula é crucial para identificar distúrbios ácido-base mistos.

Além da compensação respiratória, os rins aumentam a excreção de ácidos e a reabsorção/regeneração de bicarbonato nos túbulos renais, embora este seja um mecanismo mais lento.

Classificação da Acidose Metabólica: O Papel do Ânion Gap

A acidose metabólica requer uma abordagem sistemática para a identificação de sua etiologia. A principal ferramenta para essa classificação inicial é o cálculo do ânion gap (AG) sérico.

Cálculo e Valor de Referência do Ânion Gap

O ânion gap representa a diferença entre os cátions e ânions rotineiramente medidos no plasma, refletindo a concentração de ânions não mensurados. Ele é calculado utilizando a seguinte fórmula padrão:

AG = Na⁺ – (Cl⁻ + HCO₃⁻)

O valor de referência para o ânion gap situa-se tipicamente na faixa de 8 a 12 mEq/L, dividindo as acidoses metabólicas em dois grandes grupos.

Importância Clínica e Interpretação do Ânion Gap

A determinação e interpretação do AG auxiliam na diferenciação das causas subjacentes:

  • Acidose Metabólica com Ânion Gap Elevado: Um AG acima do valor de referência (geralmente > 12 mEq/L) indica o acúmulo de ácidos endógenos ou exógenos não mensurados.

    • Acúmulo de cetoácidos: Cetoacidose diabética, alcoólica ou por jejum.
    • Acúmulo de ácido lático: Acidose lática (tipo A por hipoperfusão/hipóxia; tipo B por drogas, doenças metabólicas, disfunção hepática).
    • Insuficiência renal (aguda ou crônica): Acúmulo de ácidos orgânicos, sulfatos e fosfatos ("uremia").
    • Intoxicações exógenas: Ingestão de Salicilatos, Metanol, Etilenoglicol, Paracetamol/Propilenoglicol, Ferro/Isoniazida (Mnemônico: MUDPILES ou variações).
    • Rabdomiólise (aporte de ácidos orgânicos).
  • Acidose Metabólica com Ânion Gap Normal (Hiperclorêmica): Quando o AG se encontra dentro da faixa normal (8-12 mEq/L), a acidose metabólica é tipicamente causada pela perda de bicarbonato ou pelo ganho de íons cloreto.

    • Perda gastrointestinal de bicarbonato: Diarreia, fístulas pancreáticas, biliares ou entéricas, ureterosigmoidostomia.
    • Perda renal de bicarbonato ou defeito na excreção renal de ácidos: Acidoses Tubulares Renais (ATR tipos 1, 2 e 4).
    • Administração exógena de cloreto: Infusão excessiva de solução salina 0,9% (NaCl), administração de cloreto de amônio.
    • Uso de fármacos: Inibidores da anidrase carbônica (ex: Acetazolamida).
    • Outras: Hiperalimentação (Nutrição Parenteral Total – NPT contendo precursores de ácido).

Correção do Ânion Gap pela Albumina

Em situações de hipoalbuminemia, o valor do AG calculado pode estar falsamente diminuído. A fórmula para correção é:

AGcorrigido = AG calculado + 2.5 * (4 – Albumina sérica [g/dL])

O uso do AG corrigido proporciona uma avaliação mais acurada para a classificação da acidose metabólica.

Etiologias da Acidose Metabólica com Ânion Gap Aumentado

A acidose metabólica com ânion gap (AG) aumentado caracteriza-se pelo acúmulo de ácidos endógenos ou exógenos não mensurados rotineiramente no plasma.

Principais Causas Endógenas

  • Cetoacidose:
    • Cetoacidose Diabética (CAD):
    • Cetoacidose Alcoólica:
    • Cetoacidose de Jejum/Inanição:
  • Acidose Lática:
    • Tipo A:
    • Tipo B:
  • Insuficiência Renal (Uremia):
  • Rabdomiólise:

Principais Causas Exógenas (Intoxicações)

  • Salicilatos (ex: Aspirina):
  • Metanol:
  • Etilenoglicol:
  • Outras toxinas: Incluem paraldeído, ferro, isoniazida, propilenoglicol e paracetamol.

Mnemônico MUDPILES

  • Methanol (Metanol)
  • Uremia (Insuficiência Renal)
  • Diabetic ketoacidosis (Cetoacidose Diabética)
  • Paraldehyde / Paracetamol / Propylene glycol
  • Iron / Isoniazid (Ferro / Isoniazida)
  • Lactic acidosis (Acidose Lática)
  • Ethylene glycol (Etilenoglicol)
  • Salicylates (Salicilatos)

Etiologias da Acidose Metabólica com Ânion Gap Normal (Hiperclorêmica)

A acidose metabólica com ânion gap normal, também denominada acidose hiperclorêmica, é caracterizada por uma diminuição primária na concentração de bicarbonato (HCO3-) no plasma, resultando em acidemia (pH < 7,35). A redução do bicarbonato sérico é acompanhada por um aumento compensatório na concentração de cloreto (Cl-).

Perda de Bicarbonato

Perdas Gastrointestinais

  • Diarreia:
  • Fístulas Pancreáticas ou Entéricas:
  • Ureterosigmoidostomia:

Perdas Renais (Acidoses Tubulares Renais – ATR)

  • ATR tipo 1 (Distal):
  • ATR tipo 2 (Proximal):
  • ATR tipo 4 (Hipoaldosteronismo):

Administração ou Ganho de Cloreto

  • Infusão Excessiva de Solução Salina 0,9% (Soro Fisiológico):
  • Administração de Cloreto de Amônio (NH4Cl):
  • Nutrição Parenteral Total (NPT) / Hiperalimentação:

Medicações

  • Inibidores da Anidrase Carbônica (ex: Acetazolamida):

Diferenciação Etiológica: O Papel do Ânion Gap Urinário

Na investigação da acidose metabólica hiperclorêmica, o cálculo do ânion gap urinário (AGU) pode auxiliar na distinção entre causas renais e extrarrenais. O AGU é calculado como: AGU = (Na+ urinário + K+ urinário) – Cl- urinário.

  • AGU Negativo:
  • AGU Positivo:

Ferramentas Adicionais na Avaliação: Delta Gap/Delta Bicarbonato

A análise da relação Delta Gap/Delta Bicarbonato (ΔAG/ΔHCO3), também referida como Delta/Delta, auxilia na identificação de distúrbios ácido-base concomitantes.

Cálculo dos Componentes Delta

  • Delta Gap (ΔAG): Fórmula: ΔAG = AG medido – AG normal (10-12 mEq/L)
  • Delta Bicarbonato (ΔHCO3): Fórmula: ΔHCO3 = HCO3 normal (24 mEq/L) – HCO3 medido

Interpretação Clínica da Razão ΔAG/ΔHCO3

  • Relação ΔAG/ΔHCO3 entre 1 e 2: Acidose metabólica com ânion gap elevado isolada (pura).
  • Relação ΔAG/ΔHCO3 > 2: Presença concomitante de uma alcalose metabólica.
  • Relação ΔAG/ΔHCO3 < 1: Coexistência de uma acidose metabólica com ânion gap normal (hiperclorêmica).

Conclusão

A acidose metabólica é um distúrbio complexo com diversas causas e mecanismos. A correta identificação da etiologia, através da avaliação do ânion gap, da correção pela albumina (se necessário) e da interpretação da relação Delta Gap/Delta Bicarbonato, é crucial para o manejo terapêutico adequado. A compreensão dos mecanismos compensatórios e das etiologias específicas permite uma abordagem clínica mais precisa e eficaz, visando a restauração do equilíbrio ácido-base e a melhora do prognóstico do paciente.

Artigos Relacionados

Ilustração anatômica do canal anal mostrando suas camadas celulares

Câncer de Canal Anal

Artigo técnico sobre Câncer de Canal Anal: anatomia, epidemiologia, etiologia (HPV), histologia (CEC), NIA e tratamento padrão (quimiorradioterapia).

Ilustração de uma obstrução intestinal causada por tumor.

Obstrução Intestinal Maligna

Análise detalhada sobre etiologia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento (conservador, farmacológico, cirúrgico) e cuidados paliativos na OIM.

Representação da região da cabeça e pescoço afetada pelo câncer

Câncer de Cabeça e Pescoço

Entenda o câncer de cabeça e pescoço: fatores de risco, tipos, sintomas, diagnóstico e tratamento. Informações abrangentes para pacientes e familiares.

Últimos Artigos

Ilustração anatômica do canal anal mostrando suas camadas celulares

Câncer de Canal Anal

Artigo técnico sobre Câncer de Canal Anal: anatomia, epidemiologia, etiologia (HPV), histologia (CEC), NIA e tratamento padrão (quimiorradioterapia).

Ilustração de uma obstrução intestinal causada por tumor.

Obstrução Intestinal Maligna

Análise detalhada sobre etiologia, fisiopatologia, diagnóstico, tratamento (conservador, farmacológico, cirúrgico) e cuidados paliativos na OIM.

Representação da região da cabeça e pescoço afetada pelo câncer

Câncer de Cabeça e Pescoço

Entenda o câncer de cabeça e pescoço: fatores de risco, tipos, sintomas, diagnóstico e tratamento. Informações abrangentes para pacientes e familiares.