O Acidente Vascular Encefálico (AVE) na infância apresenta particularidades significativas em relação aos adultos, tanto em suas etiologias quanto em sua apresentação clínica. Este guia aborda as principais etiologias do AVE pediátrico, a variabilidade de sua apresentação clínica, o uso da neuroimagem (TC e RM) no diagnóstico, e as opções de tratamento disponíveis. O objetivo é fornecer aos profissionais de saúde informações atualizadas e relevantes para o manejo adequado do AVE em crianças e adolescentes.
Etiologia do Acidente Vascular Encefálico (AVE) em Crianças e Adolescentes
A abordagem etiológica do AVE na população pediátrica difere substancialmente daquela observada em adultos. Em crianças e adolescentes, as causas subjacentes são frequentemente distintas, demandando uma investigação direcionada e específica para esta faixa etária.
As principais etiologias identificadas para o AVE em crianças incluem um espectro variado de condições, tais como:
- Cardiopatias Congênitas: Anomalias cardíacas presentes desde o nascimento que podem predispor à formação de êmbolos ou a alterações hemodinâmicas significativas.
- Doenças Hematológicas: Condições como a anemia falciforme, que pode levar à oclusão vascular devido à morfologia anormal dos eritrócitos e a um estado pró-inflamatório e pró-trombótico crônico.
- Vasculopatias: Doenças que afetam diretamente a estrutura e função dos vasos sanguíneos cerebrais. Exemplos incluem a dissecção arterial (laceração da parede arterial) e a Doença de MoyaMoya (uma vasculopatia oclusiva progressiva das artérias do polígono de Willis com desenvolvimento de circulação colateral anormal).
- Infecções: Processos infecciosos, como meningite e encefalite, ou infecções sistêmicas, como a varicela, que podem induzir vasculite, trombose ou estados de hipercoagulabilidade.
- Distúrbios Metabólicos: Alterações congênitas ou adquiridas do metabolismo que podem impactar a função endotelial, a coagulação ou a integridade vascular.
- Causas Idiopáticas: Uma proporção dos casos permanece sem etiologia definida, mesmo após investigação extensiva.
A identificação precisa da causa subjacente é um pilar essencial no manejo clínico do AVE pediátrico. A investigação etiológica rigorosa não só orienta a terapêutica na fase aguda, mas é fundamental para estabelecer estratégias de prevenção secundária eficazes, visando a redução do risco de eventos cerebrovasculares recorrentes.
Apresentação Clínica do AVE na Infância
A abordagem clínica do Acidente Vascular Encefálico (AVE) em pacientes pediátricos requer atenção à variabilidade de sua apresentação, que frequentemente difere dos padrões observados em adultos. Essa heterogeneidade sintomática pode dificultar o reconhecimento inicial.
Dentre os sinais neurológicos focais mais comuns, destacam-se a hemiparesia de instalação aguda, alterações na fala (disartria ou afasia), a ocorrência de convulsões (sejam focais ou generalizadas), cefaleia (muitas vezes súbita ou de forte intensidade), alterações visuais (como déficits de campo visual ou diplopia) e ataxia.
É fundamental reconhecer que, em lactentes e crianças de tenra idade, o quadro clínico pode ser ainda mais sutil e inespecífico. Manifestações como irritabilidade acentuada e persistente, recusa alimentar ou alterações significativas no nível de consciência (variando de sonolência a letargia) podem ser os únicos indicativos do evento isquêmico ou hemorrágico.
Essa ampla gama de apresentações clínicas implica que o diagnóstico diferencial do AVE na infância é extenso. É necessário considerar e excluir outras condições neurológicas agudas que podem mimetizar um AVE, como enxaqueca complicada, paralisia de Todd pós-ictal, tumores do sistema nervoso central, infecções (meningite, encefalite), distúrbios metabólicos, entre outras patologias.
Neuroimagem no Diagnóstico do AVE Pediátrico: Tomografia Computadorizada (TC) vs. Ressonância Magnética (RM)
A avaliação por neuroimagem é fundamental no diagnóstico do Acidente Vascular Encefálico (AVE) pediátrico, sendo a Tomografia Computadorizada (TC) de crânio e a Ressonância Magnética (RM) as principais modalidades utilizadas. A escolha entre elas envolve considerações sobre rapidez, sensibilidade e o tipo de informação diagnóstica necessária.
A TC de crânio frequentemente constitui o exame inicial na abordagem do AVE agudo. Sua principal vantagem é a rápida execução, crucial em emergências, e a alta capacidade de excluir a presença de hemorragia intracraniana, um passo determinante na definição da conduta terapêutica inicial.
Contudo, a Ressonância Magnética (RM) apresenta sensibilidade superior à TC para a detecção de isquemia cerebral em fases precoces e para a identificação de lesões pequenas. A inclusão de sequências ponderadas em difusão (DWI – Diffusion-Weighted Imaging) é particularmente importante, pois detecta restrição à movimentação das moléculas de água no tecido cerebral afetado, um sinal precoce de infarto. Por essas características, a RM é considerada o método padrão-ouro para o diagnóstico do AVE isquêmico, especialmente na população pediátrica e quando há suspeita de lesões localizadas em regiões de difícil visualização pela TC, como a fossa posterior.
Para complementar a investigação etiológica, a avaliação vascular é imprescindível. Tanto a Angio-RM quanto a Angio-TC são técnicas não invasivas utilizadas para examinar detalhadamente os vasos cerebrais. Esses métodos são essenciais para identificar possíveis causas vasculares do AVE, como dissecções arteriais ou malformações vasculares, orientando o tratamento específico e a prevenção secundária.
Tratamento do Acidente Vascular Encefálico (AVE) Isquêmico Agudo em Crianças
A abordagem terapêutica para o Acidente Vascular Encefálico (AVE) isquêmico agudo na população pediátrica é marcada pela sua complexidade e pela necessidade intrínseca de individualização do cuidado. Diferentemente do protocolo estabelecido para adultos, a utilização da trombólise com alteplase (tPA) em crianças é limitada e exige considerações criteriosas devido à escassez de dados de segurança e eficácia específicos para esta faixa etária.
Diante das limitações e particularidades do cenário pediátrico, o manejo do AVE isquêmico agudo engloba um espectro de intervenções adaptadas a cada caso. As opções terapêuticas incluem:
- Anticoagulação: Considerada em casos selecionados, dependendo da etiologia e do risco individual do paciente.
- Tratamento da Causa Subjacente: Fundamental para a prevenção de recorrências, abordando condições como cardiopatias, doenças hematológicas ou vasculopatias identificadas na investigação etiológica.
- Controle Hemodinâmico e Metabólico: Monitoramento e manejo rigorosos da pressão arterial e dos níveis glicêmicos são cruciais para minimizar danos secundários ao tecido cerebral.
- Medidas de Suporte: Cuidados gerais intensivos para prevenir complicações sistêmicas e neurológicas, como edema cerebral, convulsões e infecções.
Além das intervenções na fase aguda, a reabilitação precoce desempenha um papel essencial na otimização da recuperação neurológica. A implementação de terapias de reabilitação (fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia) deve ser iniciada o mais cedo possível para maximizar o potencial de recuperação funcional da criança.
Conclusão
O Acidente Vascular Encefálico (AVE) na infância apresenta desafios únicos em termos de etiologia, diagnóstico e tratamento. A identificação precoce dos sinais clínicos, o uso estratégico da neuroimagem e a individualização do tratamento são cruciais para melhorar os resultados neurológicos e a qualidade de vida das crianças afetadas. A investigação etiológica completa e o início precoce da reabilitação multidisciplinar são elementos-chave no manejo a longo prazo desses pacientes.