Doença de Chagas.

O Trypanosoma cruzi é um protozoário agente etiológico da doença de Chagas (tripanossomiase americana, ou esquizotripanose) que constitui uma antroponose frequente nas Américas, principalmente na América Latina

A doença de Chagas é ainda hoje, no Brasil e em diversos países da América Latina, um problema médico-social grave. No Brasil, esta endemia atinge cerca de oito milhões de habitantes, principalmente populações pobres que residem em condições precárias. A doença de Chagas, segundo a OMS, constitui uma das principais causas de morte súbita que pode ocorrer com frequência na fase mais produtiva do cidadão. Além disso, o chagásico é um indivíduo marginalizado pela sociedade. Muitas vezes não é lhe é dada uma possibilidade de emprego, mesmo que adequado à sua condição clínica, que quase sempre não é devidamente avaliada. Por isso, a doença de Chagas constitui um grande problema social e sobrecarga para os órgãos de previdência social, com um montante de aposentadorias precoces nem sempre necessárias.

Trypanosoma cruzi é um flagelado da família Trypanosomatidae, que parasita mamíferos e tem como hospedeiros invertebrados numerosas espécies de hemípteros hematófagos da família Reduviidae. A transmissão do inseto ao homem resulta, em geral, de processo contaminativo da conjuntiva, das mucosas ou de lesões cutâneas (inclusive o local de picada do inseto) com as fezes do inseto. Nos hospedeiros vertebrados, o parasito multiplica-se habitualmente sob a forma amastigota intracelular.

barbeiro

Morfologia

Nos hospedeiros vertebrados e na cultura de tecidos são encontradas intracelularmente as formas amastígotas, e extracelularmente as formas tripomastígotas presentes no sangue circulante.

Os tripomastígotas sanguíneos apresentam variações morfológicas denominadas “polimorfismo” que guardam correlações importantes com outras características fisiológicas do parasito, podendo ser portanto, tripomastigotas sanguíneos delgados ou tripomastigotas sanguíneos largos.

Já no hospedeiro invertebrado, são encontradas inicialmente formas arredondadas com flagelo circundando o corpo, denominadas esferomastígotas presentes no estômago e intestino do triatomíneo; formas epimastígotas presentes em todo o intestino e tripomastígotas presentes no reto. O tripomastígota metacíclico constitui a forma mais natural de infecção para o hospedeiro vertebrado.

OBS: todas as formas do T. cruzi possuem uma organela especial, o cinetoplasto, que é mitocôndria modificada rica em DNA

OBS: tripomastigotas sanguíneos delgados -> mais infectante

tripomastigotas sanguíneos largos -> menos infectante

morfologia

Ciclo biológico

CICLO DA DOENÇA DE CHAGAS

Habitat no hospedeiro vertebrado

A forma amastigota pode ser encontrada no interior de muitos tipos de células, mas predominantemente nas fibras musculares estriadas, tanto cardíacas como esqueléticas, nas fibras musculares lisas e no sistema fagocítico mononuclear. Algumas linhagens demonstram maior afinidade que outras para o sistema nervoso (central e periférico). No tecido nervoso, invadem tanto as células da glia como os neurônios.

A forma tripomastigota pode ser observada no interior das células na fase final do processo reprodutivo (que tem lugar nos ninhos de amastigotas), nos espaços intersticiais, no líquido cefalorraquidiano, bem como no leite, no esperma etc. Mas seu hábitat característico é a corrente circulatória, onde permanece nadando no plasma, enquanto não invade novas células do vertebrado.

A doença

Fase aguda

Pode ser sintomática (aparente) ou assintomática (inaparente). Esta é mais freqüente. Ambas estão relacionadas com o estado imunológico do hospedeiro. Há predomínio da forma aguda sintomática na primeira infância, levando a morte em cerca de 10% dos casos devido principalmente a meningoencefalite e mais raramente a falência cardíaca devido a miocardite aguda difusa, uma das mais violentas que se tem notícia.

A fase aguda inicia-se através das manifestações locais, quando o T. cruzi penetra na conjuntiva (sinal de Romana) ou na pele (chagoma de inoculação). Estas lesões aparecem em 50% dos casos agudos dentro de 4-10 dias após a picada do barbeiro, regredindo em um ou dois meses. O sinal de Romana se caracteriza por edema bipalpebral unilateral, congestão conjuntival, linfadenite-satélite, com linfonodos pré-auriculares, submandibulares e outros aumentados de volume, palpáveis, celulite do tecido gorduroso periorbitário e palpebral e presença de parasitos intra e extracelulares em abundância. O complexo cutâneo-linfonodal caracteriza-se pelo aparecimento, em qualquer parte do corpo, do chagoma primário e da linfadenite-satélite. O primeiro é representado pela inflamação aguda local na derme e hipoderme, no ponto de inoculação do parasito.

As manifestações gerais são representadas por febre, edema localizado e generalizado, poliadenia, hepatomegalia, esplenomeglia e, às vezes, insuficiência cardíaca e perhirbações neurológicas.

sinal de romaña
chagoma de inoculação

Fase crônica assintomática

Esta fase é chamada de forma indeterminada (latente) e caracterizada pelos seguintes parâmetros:  1) positividade de exames sorológicos elou parasitológicos; 2) ausência de sintomas elou sinais da doença; 3) eletrocardiograma convencional normal, e 4) coração, esôfago e cólon radiologicamente normais. Cerca de 50% dos pacientes chagásicos que tiveram a fase aguda apresentam esta forma da doença e casos que tiveram morte súbita elou que foram autopsiados devido a outras causas (morte violenta, atropelamentos, etc.), do ponto de vista anatomopatológico, mostram lesões muito semelhantes às da fase aguda. Há diferença, no entanto, quanto à intensidade das lesões. A cardite é muito discreta, na grande maioria dos casos, mas já se observa intensa denervação do SNA. Do ponto de vista imunológico, esta forma parece estar em atividade, dada a presença constante de anticorpos líticos. Apesar de assintomáticos e de apresentarem lesões muito discretas, tem sido registrado morte súbita de pacientes com esta forma da doença.

Fase crônica sintomática

Certo número de chagásicos após permanecerem assintomáticos por vários anos, com o correr do tempo apresentam sintomatologia relacionada com o sistema cardiocirculatório (forma cardíaca), digestivo (forma digestiva), ou ambos (forma cardiodigestiva ou mista). Isto devido ao fato de mudar inteiramente a fisionomia anatômica do miocárdio e do tubo digestivo (esôfago e cólon, principalmente).

Forma Cardíaca: A forma cardíaca atinge cerca de 20% a 40% dos pacientes no centro-oeste e sudeste do Brasil. Na cardiopatia chagásica crônica sintomática, o fato clínico principal é a insuficiência cardíaca congestiva (ICC) e isto se deve a diminuição da massa muscular que se encontra muito destruida devido a substituição por áreas de fibrose interrompendo fibras e fascículos; a destruição do SNA simpático e parassimpático e ao próprio exsudato inflamatório em atividade são os responsáveis pelos sintomas. Outro fator responsável pelas arritmias é a lesão vorticilar ou aneurisma de ponta, ou seja, uma lesão encontrada no ápice dos ventrículos, na qual há pobreza de células musculares com consequente hemiação do endocárdio. Além da insuficiência cardíaca, devido ao retardamento da circulação e da hipóxia, são frequentes os fenômenos tromboembólicos. Os trombos cardíacos são frequentes (76% dos casos que desenvolvem insuficiência cardíaca), mas também podem se formar nas veias dos membros inferiores. A partir destes trombos, desprendem-se êmbolos que podem originar infartos no coração, pulmões, rins, baço, encéfalo, etc., causando assim a morte súbita. O comprometimento do sistema autônomo regulador das contrações cardíacas (nódulo sinusal, nódulo atrioventricular e feixe de Hiss) traz como consequência uma grande variedade de perturbações, tanto na formação dos estímulos (anitmia, extra-sistoles) como na sua propagação (bloqueio atrioventriculares de grau variável, bloqueio do ramo direito do feixe de Hiss, esta última alteração considerada patognomônica da doença de Chagas).

Forma Digestiva: No Brasil, a forma digestiva da doença está presente em cerca de 7% a 11% dos casos. As manifestações digestivas são representadas principalmente no Brasil e na Argentina pelos megas, onde aparecem alterações morfológicas e funcionais importantes, como, por exemplo, a incoordenação motora (aperistalse, discinesia) caracterizando o megaesôfago e o megacólon. O megaesôfago pode surgir em qualquer i&- de, desde a infância até a velhice. A maioria dos casos, no entanto, é observada entre 20 e 40 anos. Aparece mais no sexo masculino do que no feminino e é mais freqüente na zona rural endêmica. Os sintomas principais são: disfagia, odinofagia, dor retroestemal, regurgitação, pirose, soluço, tosse e sialose. O megacólon compreende as dilatações dos cólons (sigmóide e reto) e são mais frequentes depois da do esôfago. O diagnóstico é feito mais tardiamente porque a obstipação, o sintoma mais frequente do megacólon, é encontrado em outras patias digestivas. É mais frequente no adulto entre 30 e 60 anos e mais no homem do que na mulher. É frequente a associação com o megaesôfago e este fato agrava em muito a desnutrição.

Forma Nervosa: Embora admitida ainda por Carlos Chagas, a existência desta forma da doença foi sempre muito discutida. Muitos patologistas não a consideram suficientemente documentada do ponto de vista morfológico. Está presente naqueles pacientes cujo quadro clínico dominante são as manifestações neurológicas (alterações psicológicas, comportamentais e perda de memória) diferenciando assim das lesões neurológicas que participam da evolução dos megas. O mecanismo patogênico básico nesta forma clínica seria a denervação, contestada por alguns autores por consistir em agregados de células gliais e linfóides sem encontro de parasitas. Admite-se, todavia, que na fase crônica da doença a perda ou diminuição dos neurônios possa ser consequência da isquemia devido A ICC e arritmias cardíacas, bem como de processos auto-imunes.

Imunidade

A infecção por T. cruzi mobiliza vários mecanismos humorais e celulares da resposta imune inata e adquirida. Em consequência, o parasita passa a ser continuamente combatido, tendo sua multiplicação reduzida. Entretanto, ele persiste indefinidamente no hospedeiro, assim como a resposta imune. Como consequência, lesões teciduais resultantes desta atividade imunológica prolongada acumulam-se, podendo desencadear as diversas formas clínicas da doença. As células natural killer (NK) também exercem papel fundamental limitando a multiplicação do parasita e promovendo a imunidade celular inata através da liberação de citocina IFN-y, relevante na ativação de macrófagos que destroem os parasitas por liberação de óxido nítrico (NO) e do ânions superóxidos (O2) produzidos rapidamente pela imunidade inata.

Além disso, o IFN-a, tem um papel-chave na indução da atividade Th1 imunoprotetora. Um fato que evidencia a presença de imunidade adquirida, bem demonstrado em modelos experimentais, é que uma nova infecção por T. cruzi pode se estabelecer ao lado de uma infecção preexistente sem ocorrer reagudização e aumento da parasitemia. Apenas um aumento dos níveis de anticorpos é verificado temporariamente após a reinfecção indicando ser a imunidade na doença de Chagas do tipo parcial. Há também indicações de que a imunidade da doença de Chagas é dependente da presença do parasito no hospedeiro, pois já foi demonstrado que camundongos tratados e curados tornam-se novamente susceptíveis a infecção desenvolvendo nova fase aguda com alta parasitemia.

Transmissão

As principais formas de transmissão da doença de chagas são:

Vetorial: contato com fezes de triatomíneos infectados, após picada/repasto (os triatomíneos são insetos popularmente conhecidos como barbeiro, chupão, procotó ou bicudo).

Oral: ingestão de alimentos contaminados com parasitos provenientes de triatomíneos infectados.

Vertical: ocorre pela passagem de parasitos de mulheres infectadas por T. cruzi para seus bebês durante a gravidez ou o parto.

Transfusão de sangue ou transplante de órgãos de doadores infectados a receptores sadios.

Acidental: pelo contato da pele ferida ou de mucosas com material contaminado durante manipulação em laboratório ou na manipulação de caça.

O período de incubação da Doença de Chagas, ou seja, o tempo que os sintomas começam a aparecer a partir da infecção, é dividido da seguinte forma:

Transmissão vetorial – de 4 a 15 dias.

Transmissão transfusional/transplante – de 30 a 40 dias ou mais.

Transmissão oral – de 3 a 22 dias.

Transmissão acidental – até, aproximadamente, 20 dias.

Diagnóstico

Clínico: Origem do paciente e presença de sinais de porta de entrada.

Fase aguda -> Febre irregular ou ausente, adenopatias satélite ou generalizada, hepatoesplenomegalia, taquicardia ou edema generalizado.

Fase crônica  ->  Alterações cardíacas (ECG); Alterações digestivas – esôfago e cólon (Raio X)

 

Laboratorial:

Fase aguda: Alta parasitemia, anticorpos inespecíficos e início de anticorpos específicos Parasitológicos: Pesquisa direta do parasito através do sangue fresco, em gota espessa, corado pelo Giemsa, cultura ou material de biopsia · Inoculação em animais de laboratório, xenodiagnóstico e hemocultura Sorológicos: IFI e ELISA

Fase crônica: Baixa parasitemia e anticorpos específicos Parasitológicos: Pesquisa indireta do parasito (xenodiagnóstico natural ou artificial e hemocultura) · Sorológicos: Fixação do complemento (Machado Guerreiro), IFI, ELISA e hemaglutinação · Parasitológico – molecular: PCR

Profilaxia

  • Melhoria das condições de vida do camponês e controle da destruição da fauna e da flora.
  • Melhoria das habitações rurais e suas extensões com adequada higiene e limpeza
  • Combate ao triatomíneo (inseticidas e biológico)
  • Controle do doador de sangue (seleção rigorosa e adição de violeta de genciana)
  • Controle da transmissão congênita (pesquisa de IgM e tratamento do recém-nascido)

Bibliografia

Rey, L. Parasitologia, 3ª ed, Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2001.

Neves, DP. Parasitologia Humana, 11ª ed, São Paulo, Atheneu, 2005.

saude.gov.br/saude-de-a-z/doenca-de-chagas

 

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Estudante de Medicina e Autora do Blog Resumos Medicina